A grandiosidade dessa história um tanto comum, escondida por trás dos armários da cozinha de móveis velhos, é a forma como a linguagem é inserida nessa reforma de qualquer jeito para tapar as rachaduras profundas do passado como uma projeção onírica

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Por Hyader Epaminondas

“Tia Virgínia” é uma crônica bela e profundamente triste, concebida com excelência criativa pelo diretor Fábio Meira. A obra é uma meditação melancólica sobre o tempo que inexoravelmente avança, abandonando momentos irrecuperáveis.

O drama captura a vitalidade que floresce como uma flor na primavera, mas que inevitavelmente murcha no outono. Aborda a invisibilidade de forma poética, mergulhando na experiência da união familiar realista entre três irmãs, destacando o combate ferrenho de interpretações absurdamente afiadas das atrizes Vera Holtz, Louise Cardoso e Arlete Salles.

A carga da responsabilidade familiar recai sobre Virgínia, uma mulher de 70 anos que nunca se casou nem teve filhos. Convencida pelas irmãs a abandonar sua vida para cuidar da mãe acamada, Virginia enfrenta adversidades em uma casa impregnada pelo cheiro de naftalina, divagando quase em um mausoléu onde o luto se esconde nas sombras. Enquanto se prepara para a chegada das irmãs, que viajam para celebrar o Natal, Virgínia se vê diante de desafios emocionais que revelam o peso silencioso da solidão e do sacrifício familiar.

Os dilemas familiares apresentados são facilmente identificáveis, especialmente quando se trata da organização da ceia de Natal. Esses momentos sensíveis e áridos, por mais desafiadores que sejam, fazem todo sentido ao encararmos a complexidade da vida. As nuances das relações familiares são exploradas com uma natureza única, destacando a fragilidade das interações entre as irmãs e sua mãe.

As cores escolhidas para pintar o drama são meticulosamente selecionadas, criando um ambiente repleto de tons opacos que simbolizam o gradual esvanecimento da vitalidade na vida de Virgínia desde seu retorno à casa materna.

A narrativa sugere que toda a família depende do sacrifício dela, apesar de ninguém conseguir admitir livremente tal fato, refletindo passivamente em suas palavras e gestos, evidenciando de forma transparente o sentimento de invisibilidade.

Essa representação simbólica destaca os estereótipos associados à filha solteira, que abdica de sua própria existência para cuidar da mãe, enquanto as irmãs casadas permanecem alheias aos seus sacrifícios e pesares.

A representação do tempo neste contexto é notável pela sinceridade penetrante com que é retratado. A passagem do tempo é manifestada de maneira tangível nas experiências vividas pela família e nos vestígios que permanecem na casa. A ausência de netos torna-se um marcador silencioso, sublinhando a validade intrínseca do tempo e ressaltando a proximidade fraterna entre as irmãs.

Uma casa assombrada por um passado familiar

Este retrato temporal é especialmente intenso no ambiente claustrofóbico de uma casa que, apesar de sua aparente grandeza e diversidade de ambientes, se entrelaça em um único espaço: a sala de estar. Nesse cenário, as irmãs se cruzam frequentemente, proporcionando um contraste impressionante entre a estaticidade da casa e a dinâmica evolutiva das relações familiares ao longo do tempo.

O diretor explora as rachaduras familiares, as fissuras escondidas por trás dos armários, para mergulhar em temas delicados, como assédio sexual e maus-tratos à empregada da casa. Essa abordagem sutil revela a complexidade dos relacionamentos sociais, proporcionando uma reflexão mais profunda sobre a natureza humana.

Com seu lançamento apagado durante o final do ano de 2023, “Tia Virgínia” se revela como uma obra subestimada. Sua excelência está na exaltação da direção visceral de Fábio Meira, que manipula o tabuleiro narrativo, dosando de forma certeira nas atuações colossais do trio protagonista.

O desenrolar em uma ambientação única, onde vivenciamos a história quase que pelo buraco da fechadura, observando fragmentos dos acontecimentos e ouvindo vozes abafadas pelo ambiente completamente opressor que se constitui uma família. “Tia Virgínia” transcende as expectativas, oferecendo uma história envolvente e provocante que merece ser descoberta e apreciada.