Pode ser obra dos generais palacianos, do novo coronavírus e/ou das pesquisas de opinião, mas fato é que o ambiente político anda mais ameno nas últimas semanas, apesar do recrudescimento da crise sanitária. Bolsonaro passeia de moto nas alamedas do Alvorada e oferece cloroquina para as emas, mas está com o seu ímpeto belicoso em recesso e isso, por si só, tem o poder de produzir algum alívio para o conjunto da nação.

Esse sentimento traduz-se de forma diversa pelos diversos corações brasileiros. Numa ponta, há quem sinta falta da profusão cotidiana de baixarias presidenciais e acha que o Bolsonaro está traindo o povo e se entregando ao sistema. Também lamentam esse vazio os que contam com o presidente para seguir se autodestruindo, sem que tenham de se dar ao trabalho de produzir opções viáveis a ele. E há os que acham que, quieto no palácio, dá para o Bolsonaro permanecer, assim como há os que percebem que, se ele caísse fora de vez, o alívio seria permanente.

Não sabemos por quanto tempo o presidente vai aceitar essa mordaça tática. Após três semanas com Covid-19, ele informou que testou negativo, avançou com a moto além dos portões do Alvorada e está retomando a agenda do Planalto e planejando viagens pelo país. Logo saberemos se a sua retórica inflamada de negação foi, mesmo, diluída pela aliança com o “centrão”. Bolsonaro continua subestimando a epidemia, o que indica que a mudança é mais comportamental do que essencial.

Inflexão na base governista

Noves fora Bolsonaro, fato é que rolou uma inflexão na aliança que sustenta o governo. O centrão entrou para valer e está ampliando seu espaço. A extrema direita dita ideológica, por sua vez, teve que baixar o facho, duramente atingida pelas investigações em curso no STF sobre fakenews e afrontas à democracia. A queda de Abraham Weintraub e a nomeação de um quarto ministro da Educação, que parece mais racional, simboliza essa inflexão. O novo ministro foi infectado na sua vinda a Brasília, num batismo bolsonarista e tanto.

Foi nesse vazio no ministério que o governo colheu uma importante derrota na decisão do Congresso sobre a renovação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), que é essencial para o financiamento do ensino básico, especialmente nas regiões mais pobres do país. O governo tentou evitar, mas o Fundeb passou a ser permanente e disporá de mais recursos que antes. Até o centrão votou em peso na proposta, depois de tentar e não conseguir obstruir sua votação. Só sete bolsonaristas mais radicais votaram contra e, com isso, perderam a vice-liderança do governo no Congresso.

Quem mais ganhou poder nessa inflexão são os generais que ocupam os principais ministérios dentro do palácio. Com o eclipse presidencial, são eles que vêm dando as cartas no governo como um todo e fomentando a disseminação de militares em cargos civis. O caso mais gritante, do Ministério da Saúde, já vem rendendo críticas sobre a incapacidade dos militares em propor e gerir ações e executar o orçamento, agravando e prolongando a catástrofe sanitária, inclusive por meio da fabricação e distribuição de remédios ineficazes, como a cloroquina. Até nepotismo está rolando entre militares, que incorporam os hábitos dos novos aliados do centrão.

Governo sem projeto

Mas falamos de um poder (executivo) sem projeto, de cunho fisiológico, para um país submerso em múltipla crise. O projeto original do governo – fiscalista, moralista e predatório – virou pó sem gerar sucedâneo. A recessão deprimiu a arrecadação, exigiu e ainda vai exigir gastos, como o do auxílio emergencial, providenciais para evitar uma convulsão social. O ministro da Economia, adepto do “liberou geral”, está agora numa cruzada para inventar um novo imposto, que o governo não quer chamar de CPMF.

Combate à corrupção é coisa do passado imaginário. Não combina com o centrão, nem com a apropriação de parte dos salário de funcionários, que fez a fortuna de Flávio Bolsonaro e alimentou o caixa dois da família toda. Sérgio Moro se tornou um estorvo e a agenda do presidente está centrada no monitoramento de investigações e processos que envolvem apoiadores, familiares e ele próprio. Os militares já vinham ocupando esse vazio antes mesmo do amordaçamento e da infecção do presidente. Num espasmo de oportunismo moralista, Bolsonaro festejou as operações da PF contra o superfaturamento por governos estaduais de insumos para enfrentar a epidemia, mas calou-se no dia seguinte, com a prisão do Queiroz, o operador da família.

A predação – do Estado, da saúde, do meio ambiente, etc – é o elemento do tripé programático que mais gera resultados. Só que também provoca reações muito além do esperado, ao ponto de motivar críticas de investidores externos e de alguns internos. A deterioração sem precedentes da imagem do país dificulta o acesso a parcerias e oportunidades para sair da crise. Bolsonaro delegou a Mourão a presidência do Conselho Nacional da Amazônia, mas o desmatamento e a epidemia explodem na região.

Porém desde que tiraram o bode da sala, paira uma estranha sensação de que ficamos congelados dentro de uma panela de pressão. É como se 2020 tivesse acabado, de repente…

Eleições

Teremos, no mínimo, eleições municipais pela frente, que prometem ser atípicas, por várias razões. Pouco haverá de campanha de rua. O contato físico estará limitado, o que aumenta a importância das redes sociais como instrumento de propaganda e espaço de debate. O voto será, praticamente, optativo, pois não haverá punição pela abstenção, o que poderá aumentá-la. Esse cenário tende a favorecer os prefeitos que podem se candidatar à reeleição. E será a primeira eleição para vereador sem coligação partidária, o que anulará os votos dos partidos que não atingirem o coeficiente eleitoral.

Bolsonaro terá papel secundário nessa eleição. O seu novo partido não conseguiu registrar-se a tempo de apresentar candidatos. Eventualmente, terá simpatia por alguns candidatos que também se interessem por seu apoio. Mas assim como Bolsonaro aporta um contingente de eleitores, também suscita rejeição, o que não interessa, principalmente, aos candidatos a prefeito das cidades com mais de 200 mil eleitores, onde poderá haver segundo turno.

Mas também não é promissora a situação do PT, do PSDB e de outros partidos de oposição, que perderam espaço nas principais cidades e, agora, terão dificuldades para recuperá-lo. Mesmo governadores recém-eleitos sofrem com denúncias de corrupção por compras superfaturadas, em plena pandemia. Por enquanto, não surgiram candidaturas fortes nas principais cidades e não parece que essas eleições trarão indicações importantes para as presidenciais de 2022.

No entanto, além da instabilidade psíquica do presidente, outros fatores tensionam o processo político. O auxílio emergencial foi prorrogado por mais dois meses, mas haverá pressão para torná-lo permanente ou, pelo menos, mantê-lo até que a crise seja superada. Isso concorre com outros interesses na disputa pelo que sobrar do orçamento federal, inclusive do Ministério da Defesa, que já vem sendo beneficiado em detrimento das demais pastas, mas quer instituir para si um piso orçamentário ainda maior. O Ministério da Economia promete privatizações em série, mas é improvável que elas supram recursos para rombos e apetites no tempo real das pressões políticas.

Além disso, Rodrigo Maia, em aliança com o MDB e outros partidos, rompeu com o centrão, que aderiu a Bolsonaro, cristalizando uma correlação de forças muito desfavorável ao intento do governo de eleger seu sucessor na presidência da Câmara, no início de 2021. Está claro que o acordo feito com o centrão não dá a Bolsonaro a maioria, embora lhe garanta uma bancada capaz de obstruir processos de impeachment.

A epidemia continua no extravagante patamar de mil mortes diárias e só foi contida, em parte, pelo isolamento social, apesar do boicote do governo federal. A expectativa positiva sobre as vacinas em teste só será efetiva no próximo ano. E, ainda, queimadas e desmatamentos avançam com a estiagem, prometendo mais recordes negativos e pressões de toda sorte. Nesses dias, Cuiabá esteve coberta por uma espessa nuvem de fumaça vinda do Pantanal em chamas. Com tanto calor, será difícil manter o Brasil congelado.

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