O diretor italiano Marco S. Puccioni conversou com a Cine NINJA sobre seu último filme, disponível na Netflix

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Por Juliana Gusman

Existe uma discussão recente no cinema brasileiro, sobretudo entre realizadores e realizadoras pertencentes a grupos marginalizados, sobre a necessidade de elaborarmos outras audiovisualidades de suas vivências. Não bastariam mais as representações prevalecentes de dor, sofrimento e vitimização – que, claro, cumprem uma importante função de denúncia, mas que também calcificam expectativas coletivas pouco esperançosas para esses sujeitos. Nesse sentido, nossas produções deveriam alargar seus escopos de intervenção, mirando não apenas evidenciar nossas adversidades latentes, como vislumbrar, no presente, horizontes mais acolhedores. Essa urgência cinematográfica atravessa Laços de Afeto (Il Filo Invisibile, 2022), o bonito filme do italiano Marco Simon Puccioni, que aporta providencialmente aqui nos trópicos pela Netflix.

Longe da tonalidade trágica e lamuriosa que se espera de narrativas que abordam os desafios, nada insignificantes, enfrentados pela comunidade LGBTQIA+, Laços de Afeto recorre ao humor e à leveza dos teen movies para abordar as asperezas que emergem em uma família fora da (hetero)norma. Leone (Francesco Gheghi) é um adolescente às voltas com uma tarefa escolar, um documentário sobre seus pais Paolo (Filippo Timi) e Simone (Francesco Scianna), juntos há duas décadas. Porém, uma traição vem à tona, colocando em xeque a felicidade que Leone acreditava alinhavar uma relação que perdurou, resiliente, por tanto tempo. Diante desta trama, a comédia surge como um dispositivo, principalmente, político. Até em momentos de extrema severidade, a vida queer pode ser contada com brandura.

Puccioni acredita, ainda, que o deboche instiga identificações e evoca achegamentos: “É um sentimento muito humano. Eu me conecto com os personagens quando eles cometem erros. A gente se sente melhor com as nossas falhas, já que eles são mais atrapalhados que nós”. Segundo o diretor, o intento de Laços de Afeto, sua primeira incursão no território cômico, era “mirar os corações para acertar as mentes”: a despeito de nossas configurações familiares particulares, nos reconheceríamos em conflitos e inadequações, em alguma medida, universais. Afinal, nem as uniões mais combativas estão imunes às inabilidades diante de um atropelo conjugal. Mesmo um amor erigido a duras penas tem direito ao vacilo e à imperfeição.

O delicado manejo da comédia e do drama – conforme Puccioni, sua grande peleja na feitura do longa – foi favorecido por um elenco de primeira grandeza: “Acho que o filme funciona muito por causa dos atores, e os atores trabalham bem por causa do roteiro e porque criei as condições para tal, como diretor”. Aposta-se em uma economia da câmera para engrandecer desempenhos que, no seu turno, não deixam esmaecer o teor de engajamento da obra. Em Laços de Afeto, o riso não amaina militâncias: “ela está disfarçada”, comenta Puccioni. De fato, o filme não recai em um didatismo excessivo, confiando na inteligência e na sensibilidade do espectador para apreender as críticas, por exemplo, ao desamparo institucional que acomete as chamadas “famílias coloridas” na Itália. “A única lei que reconhece a homossexualidade é uma lei de 2016 que permite a união civil”, pondera o cineasta. A parentalidade é francamente interditada, como Laços de Afeto deixa entrever nas suas miudezas.  Em outras palavras, o filme não abre mão de seus aspectos artístico para explicitar embates: o ativismo não se sobressai ao enredo, mas o eleva e fortalece.

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O próprio protagonista, Leone, acaba encarnando, nos detalhes, micropolíticas de resistência.  Sua arquitetura passa ao largo das masculinidades dominantes, inibidoras de qualquer perspectiva de afago entre homens, como bem argumentou, em uma curta, mas instigante entrevista, Michel Foucault.  Seja na sua relação com os pais ou com amigos, como Dario (Matteo Giuggioli) e Jacopo (Emanuele Di Stefano), Leone se revela um menino doce que, sem alarde, vai desmantelando a ordem heteronormativa, introduzindo “um curto-circuito e o amor onde deveria haver a lei, a regra ou o hábito”, como apregoa o filósofo francês. “O ator que eu escolhi não expressa, justamente, esse modelo de masculinidade, ele não exala essa virilidade. Há uma ternura sobre ele, e uma dignidade”, explica Puccioni, sempre empenhado em dirigir os intérpretes para que “a verdade que eles carregam dentro deles se expresse nas personagens”. Leone nunca se ofende com certas presunções sobre sua sexualidade, ainda incerta e tateante, como não poderia deixar de ser. Ninguém crava desejos tão cedo.  Ele se permite explorar a afeição por Anna (Giulia Maenza) sem a ancoragem de rótulos, às vezes, aprisionadores.

Isto posto, Leone não se deixa abater diante das intempéries do romance de Paolo e Simone. Insiste positivamente nas suas descobertas afetivas, mesmo se deparando com o risco de desilusões: “Eu tentei criar a personagem de Leone como alguém que ama sua família de qualquer forma e que é sábio o suficiente para entender as falhas de seus pais e para ver que problemas acontecem na vida”. E é precisamente por causa da sua capacidade de compreensão que Leone também perdura com seu documentário. “Depois que eu fiz Laços de Afeto, soube que uma menina que eu conheço em Milão, filha de um casal de mulheres, fez exatamente a mesma coisa que Leone fez. Ela fez um documentário sobre sua vida, sobre como ela foi concebida, com inseminação artificial, sobre tudo que aconteceu antes e depois que ela nasceu. De certa forma, eu estava certo no sentido de que essas crianças, quando podem, querem produzir discursos sobre suas existências e partilhá-los com outras pessoas. E se você se sente orgulhoso da sua história, ninguém consegue te machucar”. Assim, por meio da capacidade curativa e restauradora do cinema, Leone abraça altivamente as fraturas e os remendos do seu lar.

Em trabalhos anteriores – como Before Anything Else (2012) e All Together (2020), este último disponível no YouTube – Puccioni já havia experimentado a potência conciliatória e transformadora da não-ficção, seguindo uma expressiva tradição do campo, de cunho autobiográfico, para sistematizar suas contendas íntimas e pessoais. Com uma linguagem mais direta e aguerrida do que aquela permitida por uma ficção com pretensões de amplo alcance, Puccioni, como seu protagonista em Laços de Afeto, recorreu ao documentário para afirmar a possibilidade de ser e estar no mundo nos seus próprios termos. “Fazer documentários foi uma forma de proteger minha família, e de mostrar que nossa família funciona”.  Com seu ofício, Puccioni costura persistências.