“A assembleia do DIVA (Departamento de Investigação da Vida Alheia) ficava triste, quando o assunto era a visita de Bernardo à casa de um parente ou conhecido.

-Bernardo está na casa de fulano há três dias.

(…)
Bernardo era o substitutivo da palavra que não se podia pronunciar: fome. Este era o grande terror de todas as famílias. Ela era epidemia, como na crise de 1929. Ela era sazonal, no tempo do paradeiro, meses em que não se exportava cacau em Salvador. Ela era terrível em momentos de doença e morte nas famílias”

Esse trecho é do conto Visitante Inesperado, que integra a coletânea Sete Histórias de negro, de autoria do professor Ubiratan Castro de Araújo (1948-2013). Doutor em História pela Universidade de Paris IV, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) fez um trabalho brilhante na Fundação Palmares, no primeiro governo Lula, e depois na Fundação Pedro Calmon, órgão do governo da Bahia. O professor Bira, como também o chamávamos, foi um dos intelectuais brilhantes que tive a sorte de conhecer na prática da reportagem. Além de um profundo conhecimento sobre historiografia, especialmente a relacionada à escravidão, exercitava, com maestria, um senso de humor aguçado e conversar com ele era uma dádiva por sairmos com informações complexas transmitidas de uma forma leve.

Nesse texto, o professor Ubiratan tece toda a sua narrativa com o pano de fundo da solidariedade que está na base do culto ao orixá Omolu, o Senhor da Terra, que conhece os mistérios sobre saúde e doença, especialmente as infecciosas e com alta probabilidade de contágio como a covid-19. Gosto da forma como o texto alinha uma divindade envolvida com a cura e esperança especialmente dos mais pobres, à capacidade de partilha e solidariedade. No final do texto, quando as personagens que sofrem com a fome são socorridas pela realização de uma festa em homenagem a Omolu, o professor Ubiratan lembra também que no catolicismo tem um santo, São Roque, para quem se dirige a prece dos desesperados por socorro devido a uma doença infecciosa ou pela fome, que no Brasil voltou a ser epidêmica, infelizmente:

“Na minha infância, nunca tive medo de diabo nem de inferno. Medo mesmo era de Bernardo. Por isto, saía das rezas muito confiante e vitorioso. Afinal, quando o francês São Roque se juntava com o nagô Omolu, botavam o tal Bernardo para correr”.

A recordação desse conto veio encadeada a duas ações realizadas por lideranças religiosas que me sensibilizaram muito na semana passada. Uma foi da ialorixá Valnizia Bianchi, a líder do Terreiro do Cobre, comunidade a que tenho a sorte de pertencer. A outra foi a concretização de uma ideia do padre Lázaro Muniz. São, portanto, representantes de duas instituições que estão relacionadas no conto do professor Ubiratan.

As duas ações concretizam essa palavra que já começa a ser banalizada, como tantas outras, mas que, ainda bem, é levada à risca por lideranças como essa ialorixá e esse padre: empatia, ou seja, a capacidade de se conectar às necessidades de outra pessoa ou grupo.

A ação de Mãe Valnizia foi realizada no último dia 10. É a data do seu aniversário que coincidiu, como volta e meia acontece, com o Dia das Mães. Uma das coisas que ela gosta é de fazer festa e de estar junto a seus parentes, filhas e filhos de santo, amigas e amigos. Mas responsável como é, diante das primeiras notícias sobre registros de casos na Bahia, ainda nas primeiras semanas de março, suspendeu as atividades no Terreiro do Cobre, pois o candomblé é uma religião de muita troca afetiva- abraços e cumprimentos com o uso das mãos. A suspensão foi uma precaução antecipada e acertada, afinal, como ela sempre nos ensina, o importante é ter saúde, afinal se a tivermos os obstáculos podem ser superados.

 

No ano passado, quando festejou seus 60 anos, ela já havia proposto trocar presentes por produtos para doações, como fraldas descartáveis, que doou em seguida para instituições que acolhem crianças com problemas de saúde. Esse ano ela resolveu que os destinatários de sua ação seriam os idosos. Assim, avisou que quem estivesse pensando em lhe dar presentes os transformassem na compra de pacotes de fralda geriátrica e leite em pó. Quem fez a doação recebeu de volta uma porção de um almoço especial por ter sido preparado por ela (cozinhar bem é outra de suas virtudes). A troca ocorreu seguindo todas as regras de distanciamento social, sem aglomeração e com o uso de equipamentos de proteção, como máscaras.

Apelo

Titular da Paróquia de Santa Cruz, que assim como o Terreiro do Cobre está sediada no Engenho Velho da Federação, o padre Lázaro Muniz, preocupado com o movimento ainda intenso no bairro, onde há uma alta concentração da população negra, que já sabemos tem o dobro de vulnerabilidade em relação à infecção por coronavírus, resolveu fazer um apelo à comunidade por meio da circulação de um aviso em carro de som.

Para reforçar a mensagem e envolver o maior número de pessoas possíveis, padre Lázaro convidou Mãe Valnizia- são muitos terreiros de candomblé sediados no bairro- e o pastor André Guimarães da Igreja Metodista Filadelfia. A mensagem reforça que permanecer em casa é, sobretudo, um ato de solidariedade e amor em seu significado mais amplo, que significa proteger mesmo quem a gente não conhece.

Os dois gestos, aparentemente tão simples, têm uma força significativa em tempos que sobram maus exemplos de líderes religiosos, infelizmente. As plataformas de jornalismo comercial e independente e as redes sociais têm mostrado líderes alinhados ao atual governo federal pressionando de várias formas para reabertura de templos, o que é um incentivo à aglomeração e circulação de pessoas; minimizando a gravidade de contágio e propagação da doença; e, mais grave ainda, vendendo, literalmente, promessa de cura, como a semente do feijão milagroso, propagada por um pastor midiático que já é objetivo de investigação do Ministério Público Federal (MPF). São os mesmos personagens que usam o discurso religioso para agredir e mobilizar seus seguidores contra quem professa outra crença ou tem comportamentos criminalizados por estes que ainda se dizem “pastores de almas”.

A ação de Mãe Valnizia e o áudio organizado pelo padre Lázaro Muniz são bálsamos que aliviam o sofrimento devido a uma experiência completamente nova para todo mundo como têm sido os impactos sociais, emocionais e físicos dessa pandemia. Mãe Valnizia e padre Lázaro usaram o whatsapp para fazer algo que deveria ser rotina nessa plataforma: disseminar uma mensagem de esperança em tempos tão duros, além de nos ensinar a olhar para além das nossas próprias esferas de afetos: idosos que estão afastados de suas famílias não pelo isolamento social, mas, na maioria dos casos, por abandono; pessoas que não frequentam as igrejas- católica e evangélica- ou o terreiro de candomblé, mas nem por isso deixam de ser motivo de preocupação de quem o faz.

São lições importantes para um tempo em que a gente vive em meio a tanta dor e insegurança, especialmente pela incerteza de como vai ser daqui pra frente. Ações como a de Mãe Valnizia e do padre Lázaro são sopros de esperança. Elas podem nos ajudar a entender que a empatia não deve ser apenas uma palavra banalizada ou uma #hastaglacradora, mas algo que, mesmo em pequenas dimensões, têm um poder enorme de cura, assim como aponta mais um trecho do texto do professor Ubiratan Castro de Araújo:

“(…) Olhe, minha tia, lá na roça não tem luxo não. É comida braba,. Tem o Sobe-e-desce! É água, carne de sertão, quiabo e abóbora, subiu, desceu, comeu!

Olguinha riu muito. Alzira juntou os panos, pegaram o bonde do Retiro e deixaram Bernardo sozinho em casa”.

Serviço: 

Para conhecer Visitante Indesejado e outros contos: ARAÚJO, Ubiratan Castro de. Sete Histórias de Negro, Salvador, EDUFBA, 2006. http://www.edufba.ufba.br/

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