Coluna publicada no Uol

O Brasil ainda vive um ranço colonial. Por isso, nem me assusto com comentários como o de Paulo Guedes pontuando como negativa a época em que o dólar estava baixo e que empregadas domésticas iam à Disney. “Uma festa danada”, disse, sem nenhum constrangimento.

Ministro, o nosso lugar vem sendo construído há muitos séculos. Durante o período escravagista, os escravos domésticos eram tratados como se fossem da família. Hoje são as trabalhadoras domésticas que passam por situações que se assemelham no requinte de crueldade. Eu já fui empregada doméstica, e sei o que é ser impedida de usar o mesmo banheiro do patrão ou de se alimentar da comida que ela mesma faz para os seus senhores.

Neste país, é dado o limite até onde os pobres, em sua maioria pretos, podem adentrar.

Me lembro bem dessa época de dólar baixo, ministro. Em que os pobres ascenderam economicamente por meio do acesso à educação. Ganhamos a possibilidade de ingressar nas universidades — para estudar, e não somente pra limpar as salas e os banheiros. As frases que eu mais escutava era: “Agora o filho da empregada está pegando a vaga do filho da patroa.” Como se o segundo tivesse mais direitos que o primeiro.

Paulo Guedes, se dependesse da nossa sagacidade de vencer, esse país seria outro, com um olhar humanizado para a classe trabalhadora que sustenta esse país nas costas e em pé.

Se as leis trabalhistas fossem de fato cumpridas, haveria mesmo muitas domésticas lotando os aeroportos com orelhinhas de Mickey, voltando de nossas férias na Disney.

Somos desumanizadas, tratadas como propriedade pelos patrões, que exigem excelência do nosso trabalho, mas que se recusam a pagar pelos nossos direitos como trabalhadores, que não reconhecem valor no nosso esforço. (Vale ressaltar que na criação da PEC das Domésticas, o único que votou contra foi o nosso atual presidente, seu chefe.).

Essa sua fala é triste, mas, de novo, não me surpreende. Esse é o pensamento de grande parte da elite brasileira, que quer deixar “cada um no seu devido lugar”, que “não se mistura”, que acha um absurdo um pobre e/ou preto ter o mesmo direito que eles ao lazer, à educação, à habitação – e, como você, fala sobre isso com a maior naturalidade, nem consegue se atentar ao absurdo dessas considerações.

O atual governo é o reflexo de uma sociedade escravagista que sempre teve o olhar nos moldes operantes do patrão e não do trabalhador.

No ano passado, lancei um livro chamado “Eu Empregada Doméstica, a senzala moderna é o quartinho da empregada”, trazendo à tona relatos anônimos de trabalhadoras domésticas de diversas regiões do Brasil. Trago a história de minha avó e mãe, que também foram domésticas, que demonstra como essa profissão é uma herança para as mulheres pretas nesse país. Mas levanto a cada manhã disposta a lutar para que, um dia, esse placar mude e possamos ter uma profissão humanizada e digna como outras.

Ser doméstica no Brasil é ser inferiorizada, invisível. Não é uma profissão almejada, desejada — é uma profissão das que não têm escolha. Faço minhas as palavras da deputada Benedita da Silva e peço que respeite as trabalhadoras domésticas: se elas estão indo para a Disney e os filhos delas para a universidade foi porque os governos anteriores possibilitaram esse acesso que o seu governo racista e preconceituoso vem destruindo.

Eu, Preta Rara, artista, rapper, historiadora, mulher preta e gorda digo aos berros que esse governo não me representa. Resisto e existo todos os dias, na esperança de que todos os trabalhadores, domésticos ou não, possam planejar uma viagem a Disney, a Nova York ou a Paris, se assim quiserem.

Meu grande abraço a todas as trabalhadoras domésticas do Brasil.

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