Rafaela Lincoln Brito Nunes de Souza Lima. O nome e sobrenome de uma mulher trans, negra, anticapitalista, antiproibicionista, DJ e estudante da UFG. Colaboradora NINJA em Goiânia, ela escreve pela primeira vez ao portal.

 

Foto: arquivo pessoal

Por Rafaela Lincoln

Dar visibilidade às nossas vivências é extremamente importante em uma sociedade que ainda não compreende o que é ser uma pessoa transexual. Sabemos muito bem como lidam com a gente, e onde querem que nossos corpos estejam. A indiferença é enorme, acreditem, vocês não gostariam de estar na nossa pele.

A transexualidade ainda é uma patologia no Brasil, infelizmente é o que ainda garante a existência de um projeto específico para o atendimento de pessoas trans no SUS. O problema é que somos tratadas como pessoas doentes, e isso vem da educação de nossos cidadãos. Muitos acreditam fielmente que somos pessoas com algum transtorno, que realmente há um problema na cabeça de alguém que “transcende” sua identidade de gênero. Somos corpos esquecidos e por isso “merecemos” um espaço menor na sociedade.

Vocês sabem muito bem onde vão encontrar mulheres trans e travestis, e não vou nem falar dos homens trans que são tão invisíveis que a maioria da população nem sabe que eles existem. Não somos aberrações sexuais ou a demonstração do mal na terra, apenas somos, e não se deveria culpabilizar ninguém por simplesmente serem o que são. A maioria das meninas trans da minha idade estão na prostituição, é o caminho que restou a elas.

Muitas vezes vejo sereias do asfalto nas esquinas noturnas do Centro de Goiânia, meninas da noite que buscam sobreviver da migalha de quem tanto as detesta. Você me diz que elas não se esforçaram, que deveriam ter estudado, pois com dedicação todas as pessoas obtém sucesso. Nosso direito a educação é tirado da gente desde bem cedo, me fale quantas escolas você conhece que aceitem a permanência de crianças e adolescentes trans? Muitas são expulsas de seus colégios e às vezes até de suas casas. Nossas famílias são tiradas de nós, e como encontrar uma forma de sobreviver?

Calma, existe um lugar designado para garotas diferenciadas na nossa sociedade, um lugar onde elas vão ser desejadas, usadas, amadas, abusadas, descartadas e depois mortas. O país que mais mata travestis e transexuais no mundo é também o que a perspectiva de vida de pessoas trans não passa de 35 anos. Vale lembrar que o suicídio é algo também recorrente, e muitas de nós nunca assumiram suas identidades por medo. Não é fácil sobreviver todos os dias por aqui. E é por vivermos às margens da sociedade que é importante uma data para que nossas pautas sejam minimamente ouvidas.

Saber que sou uma das poucas mulheres transexuais que estão na universidade me faz sentir a necessidade de gritar pro mundo que as coisas estão mudando. Chega de sermos corpos esquecidos, corpos escondidos, corpos com medo, corpos mortos. Estamos ocupando espaços, incomodando por onde passamos, entrando na sua mente, fazendo você refletir sobre o seu próprio eu. Meu discurso soa meio agressivo? Talvez, ainda estou tentando amadurecer o meu próprio ódio. O incômodo é necessário, no final das contas estou falando de vidas que vocês esqueceram.

Tentaram negar nossa identidade, depois tentam tirar nossa família, a cada dia que passa tentam tirar nossa educação. Sobre relações afetivas? Somos pessoas que só são amadas às escuras por pessoas que usam de nossas fragilidades. Nos negam o amor, nos negam o mercado de trabalho, nos negam segurança e até o direito à vida.

Espero não morrer antes de ter o documento retificado com meu verdadeiro nome: Rafaela Lincoln Brito Nunes de Souza Lima. Mulher Trans, Negra, Anticapitalista, Antiproibicionista, DJ e estudante de Letras na Universidade Federal de Goiás. Tenho diversos privilégios com relação a outras garotas trans negras como eu. Mas ser uma mulher negra não é fácil, nem mesmo vivendo os privilégios de ter acesso a informação e ser assistida por uma Universidade Federal. Tenho direitos tirados somente pelo fato de ser quem eu sou, basta existir e ser estigmatizada.

É o sangues dos meus que está escorrendo pelas marginais, são mulheres da minha cor que são arrastadas por viaturas, como a Cláudia foi. Os dados não mentem, mulheres negras morrem mais e se casam bem menos. Se Deus existe, ele é uma mulher trans e negra, pois a nossa existência e resistência é o sinal de um milagre.

Alguns anos depois do meu nascimento, 29 de Janeiro, a mesma data foi transformada no dia da Visibilidade Trans no Brasil. Um dia onde marca a luta de pessoas trans na busca por reconhecimento, saúde, educação, segurança e respeito acima de tudo. Minha ancestralidade me ensinou que nada é por acaso, e que 2018 apenas está começando, mas a nossa paciência está no fim.