Foto: Mobilização Nacional Indígena

Apib protocolou representação onde pede que Raquel Dodge, ingresse com ação judicial para suspender o Art. 21, inciso XIV e seu parágrafo 2º, inciso I, da Medida Provisória n. 870, de 1º de janeiro de 2019, referente a atribuição do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, no que tange a identificação, delimitação e registro de terra tradicionalmente ocupada, pela afronta ao Art. 6º, da Convenção nº 169 sobre povos indígenas e tribais da Organização Internacional do Trabalho – OIT, promulgada pelo Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004; bem como pela afronta do Art. 1º do Decreto n. 1.775/96, Art. 19 da Lei n. 6.001/73 e Arts. 1º e 4º do Decreto n. 9.010/2017.

Solicitou a instauração de Inquérito Civil com o fito de investigar e monitorar os atos e processos administrativos de demarcação de terras indígenas que irão tramitar no âmbito do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, bem como apurar eventual responsabilidade administrativa atentatória à moralidade administrativa, a democracia e ofensa aos direitos culturais dos povos indígenas, com fundamento no Art. 129, inciso V, da Constituição de 1988.

 

Veja petição na íntegra:

EXCELENTÍSSIMA SENHORA DOUTORA PROCURADORA GERAL DA REPÚBLICA RAQUEL DODGE

 Ref.: REPRESENTAÇÃO SOBRE DIREITOS INDÍGENAS MP 870/2019 – JAIR BOLSONARO

 ARTICULAÇÃO   DOS    POVOS    INDÍGENAS   DO    BRASIL   –   APIB, organização tradicional que representa os povos indígenas do Brasil (Art. 231 e 232 da CF/88), sediada na CLN 407, Bloco C – sala 51 – Asa Norte – Brasília – DF – CEP 70.855- 530, neste ato representado por sua Coordenadora Executiva e respectivo Procurador Jurídico, que ao final assinam, com fundamento no Arts. 129, V, 231 e 232 da Constituição Federal, vem respeitosamente perante Vossa Excelência, apresentar REPRESENTAÇÃO, em face do PRESIDENTE DA REPÚBLICA JAIR BOLSONARO, pelos motivos de fato e de direitos a seguir expostos.

Em 1º de janeiro do presente ano, foi publicado Medida Provisória n. 870, estabelecendo a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios. Dentre as principais alterações consta a transferência da atribuição de identificar, delimitar, demarcar e registrar as terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas, para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, pasta ministerial que está sob o comando da Excelentíssima Ministra Teresa Cristina, in verbis¹:

Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento

Art. 21. Constitui área de competência do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento:

XIV – reforma agrária, regularização fundiária de áreas rurais, Amazônia Legal, terras indígenas e quilombolas;

§ 2º A competência de que trata o inciso XIV do caput, compreende: I – a identificação, a delimitação, a demarcação e os registros das terras tradicionalmente ocupadas por indígenas;

 

Este fato ganhou repercussão nacional e internacional, vejamos as noticias:

Bolsonaro dá poder aos ruralistas para demarcação de terras indígenas e quilombolas 

Bolsonaro firma decreto para abrir la tierra indígena de Brasil y la Amazonia a la agricultura y minería  

Bolsonaro enfraquece Funai e joga sombra sobre futuro socioambiental do país

Bolsonaro transfere para a Agricultura a demarcação de terras indígenas e quilombolas 

“É raposa cuidando do galinheiro”, diz Cimi sobre demarcação de terra indígena na Agricultura 

 

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), manifestou-se por meio de sua página no Facebook, denunciando essa transferência de atribuição para os representantes do agronegócio, vejamos²:

“PELO DIREITO DE EXISTIR!

 

POR UM BRASIL PLURIETNICO E MULTICULTURAL

 

Para quem tinha dúvidas quanto aos interesses que Bolsonaro representa, já no seu primeiro dia de governo, ele deixou claro seu compromisso com o que há mais atrasado no Brasil. Ao lançar a Medida Provisória número 870 de 1 de janeiro de 2019, reconheceu sua dívida com a Bancada Ruralista, e transferiu para o Ministério do Agronegócio a responsabilidade pela identificação, delimitação, demarcação e registro de terras indígenas, que historicamente eram atribuições da FUNAI, dada a sua missão de proteger e promover os direitos dos povos indígenas.

 

Bolsonaro e os coronéis da Bancada Ruralista sabem que para colocar mais terras no mercado, vão precisar inviabilizar a demarcação das terras indígenas, quilombolas, assentamentos de reforma agraria e unidades de conservação. Mas também sabem que o mundo tende para um novo modo de produzir e consumir, e que não vamos hesitar em denunciar esse governo e o agronegócio nos quatro cantos do mundo, denunciando e exigindo, a adoção e o respeito às salvaguardas sociais e ambientais, necessárias ao fiel cumprimento de nossos direitos constitucionais. Estamos preparados, não vamos recuar, nem abrir mão dos direitos conquistados, e muito menos entregar nossos territórios para honrar o acordo entre Bolsonaro e seus coronéis”.

 

Nós povos indígenas em respeito aos nossos ancestrais e comprometidos com as futuras gerações, estamos dispostos a defender os nossos modos de vida, a nossa identidade e os nossos territórios com a nossa própria vida, e convocamos a sociedade brasileira a se juntar a nossa luta em defesa de um país mais justo, solidário e do nosso direito de existir.

 

Para tanto a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil- APIB, recomenda que cada estado, organize o ingresso de uma ação popular requerendo judicialmente a nulidade dos atos praticados pelo presidente Jair Messias Bolsonaro que destrói praticamente toda a política indigenista brasileira.

 

Demarcação Já!!!!

Pois bem, preliminarmente, cabe informar que o Estado brasileiro possui uma riqueza pluriétnica que se traduz em aproximadamente 900 mil indígenas (dados do IBGE contabilizava 817.963 mil indígenas, em 2010), representando 305 diferentes povos e 274 línguas indígenas. Desde 1500 até a década de 1970 a população indígena brasileira decresceu acentuadamente e muitos povos foram extintos. A partir da década de 90 o contingente de brasileiros que se consideram indígenas cresceu 150%, resultado concreto dos valores reconhecidos em nossa Carta Constitucional.

De igual modo, os direitos dos povos indígenas estão assegurados tanto na Constituição Federal de 1988, que de forma inaugural, trouxe um capítulo específico destinado a proteção dos povos indígenas, e também, em tratados internacionais de direitos humanos que prevê a proteção aos territórios e ao modo de vida dos povos originários. No que tange a política indigenista do Estado brasileiro, desde os tempos do Brasil Colônia, esta foi orientada por uma visão de dominação, assimilação “integração” e subjugação de seus territórios aos interesses políticos econômicos que recaem sobre esses territórios, e somente com a Constituição de 1988, esse paradigma foi rompido, impondo ao Estado brasileiro o dever de respeito a realidade pluriétnica presente no território brasileiro. Importante frisar, no que tange a agência indigenista estatal, já no período colonial quando a Coroa portuguesa instalou as plantation (criação de grandes fazendas); passando pelo Brasil Império, quando da instalação do Diretório Geral dos Índios (DGI); e já no período republicano, por ocasião da criação da agência indigenista SPILTN³ – Serviço de proteção ao Índio e localização de trabalhados nacionais, criado em 1910, mas que a partir de 1918, passou a ser tão somente Serviço de Proteção ao Índio (SPI); as políticas públicas direcionadas aos povos indígenas foram implementadas de forma autoritária.

Dito isso, tem-se que não é novidade alguma, ter os direitos e interesses dos povos indígenas, vinculado a pastas ministeriais que estão sob o comando de interesses do agronegócio, no Brasil Império e o no início do Brasil República foi assim: de 1910 a 1918, a agência indigenista esteve subordinada ao Ministério da Agricultura, Industria e Comércio (MAIC), de 1934 a 1939 ficou subordinada ao Ministério da Guerra, na Inspetoria de Fronteiras; em 1940 retornou novamente para a pasta do Ministério da Agricultura. A política indigenista foi realocada no Ministério da Justiça a partir de sérias denúncias apuradas no bojo de procedimentos investigativos, tal como a CPI de 1967⁴, que culminou na extinção do SPI e criação da Funai em 1967. Ou seja, a “reestruturação” apresentada pelo presidente Jair Bolsonaro não tem nada de novo, pelo contrário, é sinônimo do retorno a uma prática colonial do século XVIII, que marcou profundamente a vida dos povos indígenas, pois foi a época em o etnocídio contra os povos foi levado a cabo com o aval do manto estatal e a conivência daqueles que deveriam defender os povos indígenas, entregues a própria sorte nos mais diversos rincões do Brasil.

Fato é que do ponto de vista do ordenamento jurídico brasileiro atual, a reestruturação apresentada, carece da lógica jurídico-administrativa, pressuposto fundamental na prática dos atos administrativos no âmbito da administração pública. O primeiro ponto, diz respeito a competência para iniciar os procedimentos de identificação e delimitação das terras tradicionalmente ocupadas. O Art. 231 da Constituição estabelece que compete a União demarcar as terras indígenas, sendo que tal dispositivo foi regulamentado pelo Decreto 1.775/1996, que dispõe, in verbis:

Art. 1º As terras indígenas, de que tratam o art. 17, I, da Lei n° 6001, de 19 de dezembro de 1973, e o art. 231 da Constituição, serão administrativamente demarcadas por iniciativa e sob a orientação do órgão federal de assistência ao índio, de acordo com o disposto neste Decreto.

No mesmo sentido, o Estatuto do Índio (Lei Federal n. 6.001/1973), em um dos seus artigos que foram recepcionados pela Constituição de 1988, vaticina:

Art. 19. As terras indígenas, por iniciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao índio, serão administrativamente demarcadas, de acordo com o processo estabelecido em decreto do Poder Executivo.

E ainda, o Decreto n. 9.010/2017, que aprovou o Estatuto da Funai, in verbis:

Art. 1º. A Fundação Nacional do Índio – FUNAI, fundação pública instituída em conformidade com a Lei n o 5.371, de 5 de dezembro de 1967, vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, tem sede e foro no Distrito Federal, circunscrição no território nacional e prazo de duração indeterminado.

[…]

Art. 4º. A FUNAI promoverá estudos de identificação e delimitação, demarcação, regularização fundiária e registro das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas.

Nota-se que o regime jurídico das terras indígenas, com assento constitucional e infraconstitucional, prevê que a demarcação das terras indígenas deve ser feita pela via administrativa, iniciando-se no órgão indigenista oficial (diga-se: Funai); passando pela análise do Ministro da Justiça, e concluindo com ato da Presidência da República, in casu, o decreto de homologação. Ou seja, os atos administrativos seguem a lógica de hierarquia, imperatividade e tipicidade, não estando contemplado nesta sequência procedimental, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Nota-se, que o envio dos processos administrativos de demarcação das terras indígenas para a pasta da agricultura, seguem apenas a lógica discricionária, para atender interesses contrários aos direitos dos povos indígenas, e neste ponto, configurando desvio de finalidade.

A finalidade é um dos elementos de validade do ato administrativo. Nas palavras de Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2003), a finalidade trata-se do “resultado específico que cada ato deve produzir em decorrência da lei”. Para Celso Antônio Bandeira de Mello (2010), “o resultado previsto legalmente e correspondente à tipologia do ato administrativo ou ao objetivo intrínseco à categoria do ato”. Todo ato administrativo contém duas finalidades: genérica e específica. A finalidade genérica trata-se do interesse público. Incorrendo o ato administrativo na satisfação de um interesse individual ou de um desejo de um particular, estará eivado de vício insanável. A finalidade específica está definida em lei e estabelece qual o escopo de cada ato especificamente. Desse modo, o ato administrativo deve atender ao interesse público e a finalidade específica pretendida para alcançar o escopo específico conforme definido em lei. Assim, “não se pode buscar através de um dado ato a proteção de bem jurídico cuja satisfação deveria ser, em face da lei, obtida por outro tipo ou categoria de ato” (BANDEIRA DE MELLO, 2010). Quando um ato administrativo incorre nessa hipótese, estamos ante a um vício de finalidade, denominado doutrinariamente como “desvio de finalidade” ou “desvio de poder”. Cretella Jr. (2000) conceitua como desvio de finalidade ou de poder “o uso indevido que a autoridade administrativa, dentro de seu campo de discricionariedade, faz da potestas que lhe é conferida para atingir finalidade pública ou privada, diversa daquela que a lei preceitua. Desvio de Poder é o desvio do poder discricionário, é o afastamento da finalidade do ato”.

O art. 2º, parágrafo único, alínea “e” da Lei da Lei 4.717/1965, dispõe:

e) o desvio de finalidade se verifica quando o agente pratica o ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência.

Nesse sentido, o desvio de finalidade ocorrerá quando houver uma finalidade diversa do pretendido pelo ato administrativo, de modo explícito ou implícito, pelo agente público. Para tanto, Celso Antônio Bandeira de Melo há duas formas de manifestação do desvio de finalidade ou de poder quando:

(i)  o agente busca finalidade alheia ao interesse público, como no caso em que usa de poderes para beneficiar a si próprio ou parente ou para prejudicar inimigos, ou

(ii)  o agente pretende uma finalidade – ainda que de interesse público – alheia a categoria do ato que utilizou como remover alguém para castigá-lo.

Assim, de forma flagrante, o presidente Jair Bolsonaro, transferiu para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, a atribuição para decidir o que será ou não terra de ocupação tradicional. Não é preciso muito esforço intelectual para concluir que tal transferência visa nitidamente acatar reivindicação da classe ruralistas, mas sobretudo, colocar os interesses privados acima dos interesses coletivos de toda a coletividade indígena e não-indígena, visto que terra indígena é bem da União (Art. 20, inciso XI, da CF/88).

E ainda, é público e notório que a ministra que irá chefiar a pasta da agricultura, Sra. Teresa Cristina, é notadamente contra a demarcação de terras indígenas, sendo assídua militante e representante do agronegócio. Como pode alguém com este perfil ditar o que será ou não terra indígena? Caso os processos demarcatórios sigam esta lógica procedimental, comprometido estará o princípio da impessoalidade e finalidade, fundamentos da administração púbica, consagrado no Art. 37 da CF/88. In casu, pelo conceito alhures mencionado – DE DESVIO DE PODER -, percebe-se como ardilosa a tarefa de identificação do instituto em comento haja vista que, como bem frisou Adilson Dallari de Abreu⁵:

“(…) o desvio de poder nunca é confessado, somente se identifica por meio de um feixe de indícios convergentes, dado que é um ilícito caracterizado por um disfarce, pelo embuste, pela aparência da legalidade, para encobrir o propósito de atingir a um fim contrário ao direito, exigindo um especial cuidado por parte do Judiciário (…)”

Neste sentido ainda é a manifestação de Hely Lopes Meirelles⁶:

“(…) O ato praticado com desvio de finalidade – como todo ato ilícito e imoral – é praticado – ou é consumado às escondidas ou se apresenta sob o capuz da legalidade do interesse público. Diante disso há que ser surpreendido por circunstâncias que revelem a distorção do fim legal, substituído habilidosamente por um fim ilegal ou imoral não desejado pelo legislador. A propósito, já decidiu o STF que ‘indícios vários e concordantes são provas. (…) Tudo isso dificulta a prova do desvio de poder ou finalidade, mas não a torna impossível se recorrermos aos antecedentes do ato e à sua destinação presente e futura por quem o praticou (…)’.

Portanto, entende-se imprescindível que o Ministério Público Federal, dada a atribuição constitucional prevista no Art. 129, inciso V, da CF/88; investigue a tramitação e o processamento dos procedimentos de demarcação de terras indígenas que estarão saindo da atribuição da Funai em direção ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.

Ademais, a transferência da atribuição para identificar, demarcar e registrar as terras tradicionalmente ocupadas, para o Ministério da Agricultura, viola o disposto na Convenção 169 da OIT. Isto porque, a Constituição de 1988 atribuiu à União a obrigação expressa de demarcar as terras indígenas, protegê-las e fazer respeitar todos os seus bens. Trata-se de poder-dever outorgado ao Estado Brasileiro, a ser implementado mediante o exercício da competência administrativa, atividade típica do Poder Executivo Federal. Nota-se que a demarcação das terras indígenas, nos termos impostos pelo texto constitucional, possui conteúdo declaratório, vez que corresponde ao reconhecimento de direitos originários dos povos indígenas, imprescritíveis, inalienáveis e indisponíveis, que precedem a própria fundação do Estado brasileiro. Trata-se de entendimento pacífico na doutrina e na jurisprudência majoritárias, que decorre da própria literalidade do art. 231 da CF, o qual dispõe:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre

as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá- las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

Nesse sentido, o processo demarcatório ostenta caráter indubitavelmente administrativo e vinculado, insuscetível a discricionariedades políticas. Transcrevem-se trechos da ementa do acórdão da PET 3388, que reafirmam esse entendimento:

(…)

  1. INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS NO PROCESSO ADMINISTRATIVO DEMARCATÓRIO. 3.1. Processo que observou as regras do Decreto nº 1.775/96, já declaradas constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal no Mandado de Segurança nº 24.045, da relatoria do ministro Joaquim Barbosa […] A demarcação administrativa, homologada pelo Presidente da República, é “ato estatal que se reveste da presunção juris tantum de legitimidade e de veracidade” (RE 183.188, da relatoria do ministro Celso de Mello), além de se revestir de natureza declaratória e força auto-executória. Não comprovação das fraudes alegadas pelo autor popular e seu originário assistente.

(…)

  1. A DEMARCAÇÃO COMO COMPETÊNCIA DO PODER EXECUTIVO DA UNIÃO. Somente à União, por atos situados na esfera de atuação do Poder Executivo, compete instaurar, sequenciar e concluir formalmente o processo demarcatório das terras indígenas, tanto quanto efetivá-lo materialmente, nada impedindo que o Presidente da República venha a consultar o Conselho de Defesa Nacional (inciso III do § 1º do art. 91 da CF), especialmente se as terras indígenas a demarcar coincidirem com faixa de fronteira. As competências deferidas ao Congresso Nacional, com efeito concreto ou sem densidade normativa, exaurem-se nos fazeres a que se referem o inciso XVI do art. 49 e o § 5º do art. 231, ambos da Constituição Federal.

(…)

12. DIREITOS “ORIGINÁRIOS”. Os direitos dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam foram constitucionalmente “reconhecidos”, e não simplesmente outorgados, com o que o ato de demarcação se orna de natureza declaratória, e não propriamente constitutiva. Ato declaratório de uma situação jurídica ativa preexistente. Essa a razão de a Carta Magna havê- los chamado de “originários”, a traduzir um direito mais antigo do que qualquer outro, de maneira a preponderar sobre pretensos direitos adquiridos, mesmo os materializados em escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não-índios. Atos, estes, que a própria Constituição declarou como “nulos e extintos” (§ 6º do art. 231 da CF).

(…)

(Pet 3388, Rel.: Min. CARLOS BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 19/03/2009, publicado no DJe-181 em 25/09/2009 e republicado no DJe-120 em 01/07/2010 – Grifou-se)

Além disso, a Convenção nº 169 sobre povos indígenas e tribais da Organização Internacional do Trabalho – OIT, promulgada pelo Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004, prevê obrigatoriedade da realização de consulta livre, prévia e informada aos povos indígenas, nos termos do disposto no artigo 6.1 da Convenção nº 169/OIT, vejamos:

  1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão:

a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente;

Nota-se, por oportuno, que o processo de internalização no Brasil da Convenção nº 169/OIT se iniciou dentro do mesmo contexto histórico, político e social, da promulgação da Constituição de 1988, comungando do mesmo espírito constituinte de pleno – e tardio – reconhecimento dos direitos originários dos povos indígenas. Devido à intensa mobilização indígena no plano internacional, a Convenção nº 169/OIT foi editada em junho de 1989 e, ato contínuo, assumida como compromisso internacional pelo Estado Brasileiro, que encaminhou a mensagem ao Congresso Nacional (MSC nº 367/1991) solicitando a sua aprovação, dentro da ordem democrática recém restaurada.

Enquanto medida administrativa que afeta diretamente os direitos humanos dos povos indígenas, o Estado antes de decidir sobre a conveniência do ato e de publicá-lo deveria ter consultado os povos indígenas brasileiros. Por medidas administrativas entende-se os “atos com efeitos concretos e específicos, […] mas também de abrangência geral, como decretos ministeriais, portarias, ou instruções normativas, que pretendem detalhar ou regulamentar direitos, ou políticas públicas para povos indígenas e tribais” (BIVIANY, 2016, p. 22).

Ressalta-se que a Convenção n. 169 estabelece um procedimento de consulta para que a medida administrativa tenha influência ou vinculação. Deve ser a Consulta realizada de modo prévio, livre, informado, de boa-fé e adequado. Entende-se por livre a garantia de participação dos povos sem pressão, coação ou intimidação no procedimento e/ou tomada de decisão. Como prévio o dever do Estado de consultar os povos indígenas antes de qualquer autorização, atividade administrativa ou medidas que os atinjam. Informada é a consulta que dispõe sobre a natureza, envergadura, reversibilidade e alcance do projeto, a razão e o objetivo do projeto e/ou medida, a sua duração, a área atingida, a identificação preliminar dos impactos econômicos, sociais, culturais e ambientais e os riscos possíveis, quem são os atingidos e os procedimentos que serão realizados durante o projeto. A adequada é a consulta que respeita as práticas sociais, culturais e cronológicas dos povos indígenas, assim como sua estrutura organizativa e de representação.

Neste sentido, a edição da Medida Provisória 870/2019, que culminou na transferência para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, a atribuição de identificar, delimitar e registrar terra tradicionalmente ocupada, sem consultar os povos indígenas, afronta a Convenção 169 da OIT, ferindo o ato de vício formal que não se convalesce, ante aos direitos fundamentais destes povos ao seu território tradicional.

 

PEDIDOS E REQUERIMENTOS

Ex positis, com fundamento no Art. 129, inciso V, da Constituição Federal, requer:

  1. Seja a presente REPRESENTAÇÃO recebida para que sejam iniciados os procedimentos para propositura de ação de controle judicial do 21, inciso XIV e seu parágrafo 2º, inciso I, da Medida Provisória n. 870, de 1º de janeiro de 2019, referente a atribuição do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, no que tange a identificação, delimitação e registro de terra tradicionalmente ocupada, pela afronta ao Art. 6º, da Convenção nº 169 sobre povos indígenas e tribais da Organização Internacional do Trabalho – OIT, promulgada pelo Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004; bem como pela afronta do Art. 1º do Decreto n. 1.775/96, Art. 19 da Lei n. 6.001/73 e Arts. 1º e 4º do Decreto n. 9.010/2017.
  2. Requer ainda, a instauração de Inquérito Civil com o fito de investigar e monitorar os atos e processos administrativos de demarcação de terras indígenas que irão tramitar no âmbito do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, bem como apurar eventual responsabilidade administrativa atentatória à moralidade administrativa, a democracia e ofensa aos direitos culturais dos povos indígenas, com fundamento no Art. 129, inciso V, da Constituição de  1988.
  3. Em qualquer caso, enseja medidas urgentes a fim de evitar risco de dano irreparável aos povos indígenas pela suspensão e/ou interferência política nos procedimentos demarcatórios, atingidos por eventual comportamento da Ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e seus respectivos subordinados.

 

Pede-se urgente deferimento.

Brasília, 03 de janeiro de 2019.

 

Sonia Guajajara

Coordenadora Executiva

Articulação dos Povos Indígenas do Brasil

Luiz Eloy Terena

Assessor Jurídico da Apib

OAB/MS 15.440

 

Referências

1   Disponível  em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Mpv/mpv870.htm, acesso em 03 de janeiro de 2019.

2   Disponível em https://www.facebook.com/apiboficial/, acesso em 03 de janeiro de 2019.

3   Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN), criado por meio do Decreto n. 8.072, de 20 de junho de 1910; estando vinculado administrativamente ao Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio (MAIC).

4    Relatório      da    Comissão    de     Inquérito     instituída    pela     Portaria     no     239/67.    Disponível     em: http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr6/dados-da-atuacao/grupos-de-trabalho/violacao- dos-direitos-dos-povos-indigenas-e-registro-militar/relatorio-figueiredo       .             Acesso  em 20/12/2018.

5   DALLARI, Adilson Abreu. Desvio do Poder na Anulação do Ato Administrativo. Instituto de Direito Público  da Bahia. Revista Eletrônica de Direito do Estado. Numero 7 – julho/agosto/setembro, 2006. Disponível em: http://www.direitodoestado.com/revista/REDE-7-JULHODESVIO%20DE%20PODER- ADILSON%20DALLARI.pdf

6   MEIRELLES, Hely Lopes. Op. cit. p. 92