Eduardo Suplicy apresenta Anderson Herzer: “Ele queria que as pessoas fossem mais humanas”
O encontro entre Anderson Herzer e Eduardo Suplicy será fundamental para concretizar a primeira publicação de um livro escrito por um homem transsexual no Brasil.
“Vi a lenta corrupção,
Vi o olhar do corruptor,
Vi uma vida na destruição
Eu vi o assassinato do amor”
(Trecho do poema “A Gota de Sangue”, Anderson Herzer, A Queda Para o Alto, 1982)
Para Jaques Ranciére, um dos mais importantes pensadores contemporâneos, a política da literatura não diz respeito à política dos escritores, nem aos seus engajamentos nas lutas políticas ou sociais do seu tempo. A literatura faz política enquanto literatura, enquanto estética da palavra, estabelecendo novos laços de comunicação, germinando pontes estéticas, fazendo florescer novas sensibilidades. A literatura, como toda arte, faz política acendendo (e não esclarecendo) novos olhares, excitando as inquietudes.
A política, ao seu passo, funciona como uma forma de colocar nossas sensibilidades em prática. De torná-las linguagem. É dentro da política que concretizamos esse desejo sensível, e assim, diz Ranciére, esse desejo se torna uma estética, uma superfície, uma bandeira. De forma similar à religião, essas bandeiras estruturam a consciência e o comportamento humano, produzem instituições, que logo serão destruídas, para erigir e legitimar novas.
O livro “A Queda Para o Alto” será o resultado desse encontro entre literatura e política: Uma literatura que faz política e uma política que se parece, como poucas, com a literatura, com a arte mesma. O encontro entre Anderson Herzer e Eduardo Suplicy será fundamental para concretizar a primeira publicação de um livro escrito por um homem transexual aqui no Brasil.
Essencial a presença de Suplicy, acudindo ao chamado de Lia Junqueira, que naquele momento atuava como presidente do Movimento de Defesa do Menor. Ela denunciava que Herzer estava sendo vítima de uma jogada política do diretor da Febem, que pretendia utilizar os escritos de Anderson para publicar um livro que enaltecesse a instituição, sem mencionar o nome do autor. Suplicy pediu formalmente a tutoria de Herzer, reconhecendo nele um grande talento como escritor. Era necessária essa ternura, que parece caracterizar o perfil político de Suplicy, para ouvir esse chamado, mesmo quando sua ajuda não foi suficiente. Após um breve tempo vivendo fora da Febem, Anderson acabou se suicidando, com apenas 20 anos, jogando-se de um viaduto da Avenida 23 de Maio, em São Paulo.
A vida de Anderson é iconográfica e representa, ainda hoje, a vida de muitos jovens e crianças marginalizadas no Brasil: um enorme talento silenciado pela falta de oportunidades, um ser sensível e afetivo envolto num contexto de violência e abuso institucional, estrutural, cultural. Como homem trans, seu desespero tinha um viés a mais: a ordem repressiva para com as identidades autopercebidas, o que agilizou seu trágico fim.
A imprensa tradicional, na sua compulsão estigmatizante, tem por costume lembrar desses jovens na hora em que as revoltas tomam conta das instituições, apresentando-os como “sujeitos violentos e irrecuperáveis”. Porém, o livro de Anderson, a sua biografia e seus poemas, são o testemunho do desejo de encontrar no amor um refúgio onde consolidar a nossa verdadeira natureza, uma necessidade de refletir sobre a violência, de sermos interpelados por ela através do relato poético.
A literatura é uma estética, é uma forma da lírica, mas também é um testemunho, uma voz. E o livro de Anderson é uma voz consolidada, voz de um tempo em que as discussões sobre gênero apenas germinavam no Brasil. É um relato que mostra como se sobrevivia em épocas de ditadura, sendo um marginal transexual. Um texto fundamental para a construção de uma historicidade das instituições modernas e das lutas de gênero.
Em entrevista, Eduardo Suplicy detalha ainda mais a história de Anderson e a sequência que o teve como grande protagonista na vida do escritor. Confira:
“No ano 1979, tempo em que eu fui deputado estadual na Assembleia Legislativa, a presidenta da fundação em defesa do menor, a Lia Junqueira, me alertou sobre diversos episódios que estavam acontecendo de maus tratos na Febem (Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor). Então eu decidi ir visitar a instituição para evitar que acontecessem esse tipo de situações.
Certo dia, a Lia me relatou que havia uma menina, uma moça de dezessete anos que estava na Febem há três anos e meio, que estava preocupada. Ela sabia escrever bem, escrevia poemas. E na verdade ela nunca tinha cometido delito algum. O juiz me informou que se alguém se fizer responsável por ela, ela poderia ficar em liberdade. E eu então fui à sede da Febem e conversei longamente tanto com a Lia Junqueira quanto com Herzer.
Ela, embora menina moça, se sentia e se vestia como se fosse um rapaz. Ela cortava o cabelo, semelhante ao como o faria um rapaz. Ela me relatou que na Rolândia, no norte do Paraná, seu pai era dono de um bar, e que certo dia ela percebeu uma correria em casa e infelizmente souberam que seu pai havia sido assassinado dentro do bar. E então, a sua mãe, não tendo propriamente condições de trabalho que pudessem lidar com o sustento, resolveu vender seu corpo, se prostituir. Mas, pegou uma doença venérea e veio a falecer. Então a Sandra Mara foi morar com sua vó, muito querida. Um tempo depois, a sua vó faleceu e ela foi viver com uma tia, que era casada com um senhor bem mais idoso. Eles se mudaram para Foz do Iguaçu, onde viveram por um tempo. Mais tarde se mudaram para São Paulo, para o bairro São João Clímaco. Ela era uma moça com muita energia, muito esperta. Aos treze anos, ela namorava um rapaz de uns trinta anos, o apelido dele era “bigode”. Esse rapaz morreu em um acidente de moto. Então ela adotou esse apelido para ela também.
Ela, por vezes, saia de noite nos bares locais e costumava tomar Coca-Cola com Optalidon, o que dificultava ela para acordar cedo e ir à escola. Então, sua mãe a internou em um centro infantil que havia na Rodovia dos Imigrantes. Ela fugiu de lá e voltou para casa, o que deixou bem preocupada sua mãe, por causa da falta de disciplina e do fato dela sair de noite e não conseguir acordar cedo.
Um dia, seu padrasto tentou ter relações sexuais com ela, abusar dela. Herzer lutou, bravamente, levou um tombo e quebrou o braço. Porém, a partir desse episódio, a sua tia resolveu colocar ela na Febem. Lá ela viveu desde os catorzes até os dezessete anos e meio sem ter cometido crime nenhum. Na Febem, ela se converteu em uma espécie de líder. Organizava saraus, escrevia poemas, se apaixonou por outras internas para quem dedicou trechos da sua biografia.
“…Durante aquelas carícias profundas trocadas entre nós, eu sentia a vida bem mais próxima a mim, beijava e abraçava Vera, como se eu estivesse abraçando minha existência, eu acariciava seu corpo, lentamente, com um desejo interior tão imenso que não sabia mais distinguir o significado da amargura, não me doía mais a saudade do mundo, e eu tinha ali junto a mim, resistindo ao frio, ao vento, enfim, eu tinha finalmente alguém para mim, para me ouvir quando eu quisesse falar, para me olhar quando eu ficasse em silêncio” (Anderson Herzer, A Queda Para o Alto, 1982)
Percebeu, com muita lucidez, um sistema de maus tratos que acontecia tanto na Febem masculina quanto na feminina. Também registrado na sua biografia. Na Febem as crianças eram espancadas, torturadas de maneira brutal durante a noite. Herzer passou também por isso.
“…durante a surra que eu estava levando, com tapas no rosto, torcidas no braço, chutes nas costas, em determinada hora, quando eu caía novamente no chão, ele me apertou e torceu meu braço, justamente onde estavam os alfinetes. Com o aperto, um alfinete deslocou-se, podendo ser visto, com a ponta espetada para cima, embora continuasse dentro da carne, não saindo totalmente para fora. Meu braço começou a sangrar…” (Anderson Herzer, A Queda Para o Alto, 1982)
E eu então, quando soube da sua história, e tendo lido seus poemas, que eu achei de muito boa qualidade, eu disse a ela “Olha, eu me disponho sim a contratá-la, convidá-la para ser uma espécie de estagiária no meu gabinete, onde você vai aprender a fazer um pouco de tudo: ajudar na recepção, atender o telefone, tirar xerox (não existia internet ainda né). Vou te pagar o necessário para você pagar uma pensão, alimentação e outras necessidades”. E falei para ela ainda que “Como você escreve muito bem, eu vou lhe assinar, como parte do seu trabalho, redigir sua história”. Ela aceitou.
Fomos em várias pensões, até que ela achasse uma que a aceitasse. Já que ela, embora tinha Sandra Mara na sua identidade, assinava seus poemas como Anderson e também era chamada assim.
Certo dia, ela me mostrou um poema “Minha Vida, Meu Aplauso”. Eu lhe perguntei: “Isto quer dizer que realmente você poderia morrer?”. Ela me contou que tinha feito o concurso para se tornar uma funcionária efetiva da Assembleia Legislativa. Mas, no dia do exame, o homem que percorria as cadeiras para avaliar a identificação de cada um, chegou para ela censurando o fato dela se apresentar como homem quando na sua carteira figurava nome de mulher. Ela disse que isso a deixou muito constrangida e que finalmente acabou reprovando o exame. Então, eu disse para ela “Seu livro é muito bom, é muito interessante”, e encaminhei-a para a editora Vozes. Os editores Rose Marie Muraro e o Frei Leonardo Boff (Ele ainda era frei, então), gostaram muito, e falaram que em dois meses ficaria pronto. Eu alentei a Sandra, falando que ela ia ter muito sucesso.
Minha Vida, Meu Aplauso
Fiz de minha vida um enorme palco
Sem atores, para a peça em cartaz
Sem ninguém para aplaudir este meu pranto
Que vai pingando e uma poça no palco se faz.
Palco triste é meu mundo desabitado
Solitário me apresenta como astro
Astro que chora, ri e se curva à derrota
E derrotado muito mais astro me faço.
Todo mundo reparou no meu olhar triste
Mas todo mundo estava cansado de ver isso
E todo mundo se esqueceu de minha estreia
Pois todo mundo tinha um outro compromisso.
Mas um dia meu palco, escuro, continuou
E muita gente curiosa veio me ver
Viram no palco um corpo já estendido
Eram meus fãs que vieram para me ver morrer.
Esta noite foi a noite em que virei astro
A multidão estava lá, atenta como eu queria.
Suspirei eterna e vitoriosamente
Pois ali o personagem nascia
E eu, ator do mundo, como minha solidão…
Morria!
(Anderson Herzer, A queda para o Alto, 1982)
Herzer tinha uma grande sensibilidade, tinha uma grande percepção do mundo que conhecera. Tentava ajudar a cada criança ou adulto que pudesse passar por algo semelhante, acreditando que a sociedade e o que existe é que poderia ser diferente. Era uma pessoa doce que tratava muito bem a quem lhe respeitava, capaz de realizar um enorme esforço para atender a quem pedisse pela sua ajuda. Tinha uma personalidade muito enérgica, ativa, o que fazia dela sempre se destacar por dentre as demais pessoas que estivessem no mesmo grupo com ela. A sua única dificuldade era ser aceita do jeito em que ela era, do jeito em que ela se sentia consigo mesma.
“…Eu queria ser da noite o sereno e
umedecer o vale seco e pequeno.
Eu, queria, no dia claro, luzir
para o amor todo o povo conduzir.
Eu queria que branco fosse a cor da terra e
não vermelha para inspirar a guerra.
Eu queria que o fogo me cremasse
para ser as cinzas de quem hoje nasce.
Eu queria que os mais belos poemas fossem de Deus
para neles encontrar as virtudes dos irmãos meus.
Eu queria e muito queria saber ganhar
para que a simples alegria pudesse comigo guardar…”
(trecho do poema “Encontrei o que eu queria”, Anderson Herzer, Para a Queda do Alto, 1982)
A essa altura ela morava com uma amiga dela da Assembleia Legislativa, onde por vez ela organizava saraus e estava sendo reconhecida. Mas, aproximadamente dois meses depois, a amiga dela me ligou para me dizer “Anderson saiu dizendo que ia para a 23 de maio”, eu falei “Procure ir atrás dela e diga para ela me ligar, que eu quero conversar com ela”. Mas, às seis da manhã, me ligaram da gastroclínica para me dizer que encontraram uma pessoa na 23 de maio, gravemente ferida e que a levariam para o Hospital das Clínicas. Ela tinha no seu bolso um papel com meu telefone e meu nome, e por isso que estavam me telefonando. Eu fui até o Hospital das Clínicas. Disseram que era preciso fazer uma doação de sangue, então eu fui até aonde se fazia a doação, para eu também fazer, mas quando estava lá me informaram que ela infelizmente tinha falecido.
As pessoas me perguntam sobre ela, sobre o livro dela. Se não me engano, o livro dela tem mais de 25 edições e foi o publicitário Carlito Maia quem sugeriu: “A Queda para o Alto” para o título do livro. É muito lido, sobretudo pelos jovens na periferia. Então, muitas pessoas que leram o livro comentam comigo que gostaram muito. Um filme baseado na história foi lançado em 1986, “Vera”, dirigido por Sérgio Toledo, e o papel principal rendeu a Ana Beatriz Nogueira o prêmio de melhor atriz no Festival de Berlim em 1987. O meu papel foi representado pelo ator Raul Cortez.
No ano 2000, um grupo de teatro de Heliópolis montou uma peça, e perguntaram se eu poderia fazer uma gravação de vídeo contando a história que eu acabo de falar para eles passarem antes da apresentação. Eles queriam mostrar a história de vida dela, e eu fiz com o maior prazer. A primeira apresentação aconteceu no Teatro Ipiranga, perto de Heliópolis, e teve um grande sucesso. Para a segunda apresentação, como a primeira tinha sido tão boa, eu convidei o dramaturgo José Celso Martinez Corrêa, e ele gostou tanto que decidiu apresentar a peça no Teatro Oficina. E aí, eu, em todas essas apresentações, ao invés de fazer por vídeo, fiz a abertura ao vivo. O SESC gostou tanto, que fez que o grupo de teatro apresentasse a peça em pelo menos em dez SESCs de outros bairros de São Paulo, Rio de Janeiro e Ribeirão Preto.
A história de Anderson é muito inspiradora. O livro foi dedicado, com seus poemas e sua história, a todas as crianças no Brasil que precisam de ter melhores oportunidades.
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Entre os textos que sobreviveram ao seu suicídio, Herzer escreveu vários que foram dedicados a Suplicy. A gratidão é também uma forma do sentimento amoroso:
“…Poucas vezes vi seus filhos, mas muitas vezes pensei sozinho, o quanto eles devem andar de cabeça erguida, com o peito cheio de orgulho, por notarem o pai formidável que tem.
E certo que você me conhece há pouco tempo, talvez pense até que eu sou somente uma pessoa a quem você estendeu a mão, e que eu não contribuo em nada, apenas lhe dei problemas e despesas.
Mas eu não penso assim de você, e isso e que me importa. Você para mim é a vida que eu vivo a cada dia que se passa, e quem quando me ajudou não me rejeitou nem por um momento por eu ser apenas um pedaço de sangue já coalhado e pisado, que me tirou o lodo que cobria a minha face. Enfim, palavras não seriam suficientes e sim um esforço de minha parte para que um dia você possa sentir que compensou alguma coisa todo este trabalho que está tendo agora…” (Carta ao Eduardo Suplicy, Anderson Herzer, São Paulo, 5 de setembro de 1980)
“E a este Homem, eu agradeço, e sei que muito mais tenho a agradecer, pois ele não teve preconceito algum sobre minha pessoa. Ele não quis saber qual era meu nome exato, ou por que um nome feminino denominava uma pessoa como eu, uma pessoa que lhe falava franca e abertamente a respeito de meus casos amorosos, da beleza desta ou daquela, ao passo que antes eu só conhecia as opiniões dos “homens”, pobres homens, que me criticaram e ainda criticam hoje dizendo que eles sim eram homens, pelo órgão que tinham no meio de suas coxas, e o fato de eu ter muitas namoradas não me fazia um homem, e agora depois de tanto tempo pensando na miserável mente destes homens. Nada tenho a dizer sabre estas mentes cobertas, sobre esta ignorância tão forte que os transforma de homem para MACHO, minúsculos machos que pensam trazer seu caráter em forma de duas bolas no meio de suas pernas”. (Anderson Herzer, A Queda para o Alto, 1982)