Nesta segunda-feira (10), organizações da sociedade civil lançaram uma campanha via e-mail na plataforma Criança Não é Mãe. O objetivo é pressionar o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e as lideranças da Câmara dos Deputados para que não coloquem em votação o requerimento de urgência do PL 1904/24. Conhecido como PL da Gravidez Infantil, o projeto de lei, de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e outros, visa alterar o Código Penal (CP) para equiparar o aborto acima de 22 semanas de gestação ao crime de homicídio simples. A proposta inclui os casos de aborto por estupro, atualmente permitidos pelo CP, sem limite de idade gestacional.

Se aprovado, o PL 1904 proibirá totalmente o aborto por estupro acima de 22 semanas. As principais afetadas por essa mudança seriam crianças vítimas de estupro, cujos casos de abuso e consequentes gestações demoram a ser identificados, resultando em busca tardia pelos serviços de aborto legal. Em 2022, 74.930 pessoas foram estupradas no Brasil, 61,4% delas tinham até 13 anos, segundo dados do Fórum de Segurança Pública.

O contraste chocante está na penalização: para o crime de estupro, a pena máxima é de 10 anos. Contudo, se a lei for aprovada, mulheres estupradas e profissionais que as atendem, quando as gestações têm mais de 22 semanas, estarão sujeitos a uma pena máxima de 20 anos.

O Caminho do PL 1904/24

O requerimento de urgência para o projeto, apresentado em 17 de maio, estava na pauta do Plenário da Câmara na última quarta-feira, 5 de junho. Porém, a votação não aconteceu devido a tumultos, especialmente na sessão da Comissão de Direitos Humanos, que resultou em um problema de saúde da deputada Luiza Erundina (PSOL-SP).

Arthur Lira, presidente da casa, comprometeu-se com o autor do PL a colocar o requerimento em votação no dia 12/06. Caso a urgência seja aprovada, o projeto seguirá para votação no plenário da Câmara sem passar por análises nas comissões, onde poderia ser modificado ou vetado, e sem debate com a sociedade. Para evitar isso, organizações feministas lançaram um abaixo-assinado para pressionar Arthur Lira e as lideranças da Casa, buscando impedir que mais crianças tenham sua infância interrompida pela maternidade no Brasil.

Problemas com o PL 1904/24

Desde 1940, o Código Penal garante às brasileiras o direito de interromper a gestação em casos de estupro e risco à vida. Em 2012, o STF estendeu essa permissão aos casos de anencefalia fetal. O PL 1904/24 limita um direito garantido há décadas, colocando em risco principalmente as pessoas mais vulneráveis.

Anualmente, 25 mil crianças de até 14 anos têm filhos no país, segundo dados do Sistema de Nascidos Vivos. Por lei, relações sexuais com menores de 14 anos são consideradas estupro de vulnerável, garantindo a essas crianças o direito de interromper a gestação legalmente. No entanto, entre 2015 e 2022, foram realizados, em média, apenas 1.800 abortamentos legais por ano no Brasil, conforme levantamento da Revista Azmina. “Muitas vezes, a situação de abuso demora a ser descoberta e a gravidez identificada, fazendo com que demorem mais a chegar nos serviços de aborto legal ou nem cheguem a eles”, explica Laura Molinari, coordenadora da campanha Nem Presa Nem Morta.

Somente 3% dos municípios brasileiros contam com um serviço de aborto legal. Além das crianças, muitas mulheres precisam viajar para acessar esse direito, enfrentando falta de recursos e estrutura. Aquelas que são mães ou cuidadoras precisam se organizar para essas viagens, o que explica porque muitas vezes a busca pelo direito ao aborto legal ocorre após 22 semanas de gestação.

Contexto político

O requerimento de urgência para o PL 1904/24 ocorre em um cenário de complexas disputas políticas, onde os direitos das mulheres, crianças e pessoas gestantes são usados como moeda de troca. Em 17 de maio, uma decisão liminar do Ministro Alexandre de Moraes, do STF, suspendeu a Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que tentava coibir o aborto acima de 22 semanas. No mesmo dia, o PL 1904/24 foi protocolado pelo deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) na Câmara Federal. No início de junho, o Brasil foi cobrado pelo Comitê sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW) da ONU para descriminalizar e legalizar o aborto no país. A cidadania precisa estar alerta e engajada diante dessa disputa contínua.