Por Mariana Borges Martins da Silva

Quando o Auxílio Brasil no valor de R$ 600,00 começou a ser pago em agosto deste ano, a expectativa da campanha de Bolsonaro era que sua versão “turbinada” melhoraria o desempenho do presidente nas pesquisas eleitorais, sobretudo dentre a parcela mais vulnerável da população. Já passamos de meados de setembro e as pesquisas parecem indicar que o efeito do auxílio, se é que houve algum, foi mínimo. Segundo dados da Genial/Quaest, desde o início de agosto até o levantamento mais recente, realizado no dia 21 de setembro, Bolsonaro manteve os mesmos 29% das intenções de voto dentre os eleitores de baixa renda. 

Por que o auxílio de R$ 600 não alavancou a popularidade de Bolsonaro dentre os mais pobres? Uma das hipóteses é a perda do poder de compra do auxílio diante da inflação, sobretudo em relação ao preço dos alimentos. Levantamento feito pela Folha de São Paulo indica que o benefício turbinado deveria chegar ao menos a R$732,12 para manter o mesmo poder de compra de 2020, quando o auxílio emergencial foi estabelecido em razão da pandemia. Ainda assim, mesmo defasado, o auxílio de R$ 600 representa um aumento substancial se comparado com a média recebida pelos beneficiários do Bolsa Família, programa de transferência de renda implementado durante os governos do ex-presidente Lula, adversário de Bolsonaro. Fosse o valor dos auxílios de renda tão determinante na definição do voto dos mais pobres, seria difícil explicar por que o atual presidente aparece tão distante de Lula nas pesquisas eleitorais. 

Conclui-se, portanto, que a ausência de efeito do auxílio “turbinado” na popularidade de Bolsonaro dentre os mais vulneráveis não é simples consequência da diminuição do poder de compra. Na realidade, duas razões se complementam na explicação desse fato. A primeira é que, apesar de importantes, as políticas de transferência de renda não são o único parâmetro que os eleitores de mais pobres aplicam para avaliar se um político governou para os estratos vulneráveis. A segunda razão é que os setores populares associam o auxílio com a compra de votos. A percepção de que o aumento tem intenção eleitoreira consolida dentre os eleitores a imagem de que Bolsonaro não é um político verdadeiramente atento a seus interesses.

Desde os tempos dos governos Lula e Dilma, é comum a visão de que a vantagem dos candidatos petistas dentre os eleitores de baixa renda e nordestinos era resultado do Bolsa Família. No entanto, ao contrário do que o senso comum em relação às classes populares pressupõe, os eleitores mais pobres, assim como os eleitores dos demais segmentos de renda, usam uma miríade de experiências cotidianas para julgarem se um governante de fato trabalhou para os mais vulneráveis.

Em conversas com os eleitores de baixa renda do Sertão baiano para minha pesquisa etnográfica, percebi que era recorrente a avaliação, mesmo entre aqueles que diziam não serem eleitores de Lula, de que o ex-Presidente havia “olhado para a pobreza”. O Bolsa Família aparecia apenas como um fator, dentre outros, citados para exemplificar como Lula havia trabalhado pelos mais pobres. Além da transferência de renda, os eleitores mencionavam tanto políticas pelas quais haviam sido diretamente beneficiados, tais como o programa habitacional Minha Casa Minha Vida e programas de acesso a serviços básicos como água e luz, quanto políticas que indiretamente afetavam sua realidade cotidiana. Eram comuns comparações quanto ao poder de compra, acesso a bens de consumo, ou até mesmo a regularidade da merenda escolar em suas comunidades.

Durante o governo Bolsonaro, por sua vez, os eleitores de baixa renda não têm outros exemplos palpáveis em seu dia-a-dia de melhoria de sua condição de vida para além do Auxílio Brasil, sobretudo diante do aumento do custo de vida e do pessimismo com a situação econômica do país nos últimos anos. Visto por este ângulo, não é surpresa que o aumento temporário do auxílio seja insuficiente para que os mais pobres enxerguem Bolsonaro como alguém que tenha de fato “olhado para a pobreza” em seu governo. 

Quanto ao prazo de validade do aumento, trata-se de fator que reforça, dentre as classes populares, a imagem de Bolsonaro como um governante desatento aos mais pobres. Entrevistas com eleitores e sondagens de opinião pública mostram que beneficiários do auxílio encaram o aumento com uma tentativa de manipulação de seus votos. Eleitores de baixa renda classificam como compra de voto aqueles favores e benefícios distribuídos ocasionalmente pelos políticos durante o período eleitoral, sendo a temporalidade fator determinante na percepção popular de que o político tem intenção eleitoreira. Quando início e fim do pagamento coincidem com o período da campanha eleitoral, é quase impossível desfazer a associação estabelecida pelos eleitores entre aumento do auxílio e compra de votos.

Mas, se os eleitores mais pobres fossem de fato suscetíveis a serem “comprados” pelas políticas de transferência de renda da vez, qual seria o problema de eles associarem o aumento do benefício com a compra de votos? O problema é que, ao contrário do que tradicionalmente se pressupõe, eleitores de baixa renda percebem negativamente a compra de voto, exatamente porque tomam como certo que candidatos que compram voto abandonam os eleitores após as eleições. Com o reajuste com hora marcada para acabar, Bolsonaro, sem querer, colou a sua imagem a de políticos chamados popularmente de “políticos de copa do mundo”, que “só ajudam de quatro em quatro anos”. 

O pífio desempenho do auxílio “turbinado” na popularidade de Bolsonaro dentre os setores populares deixa, portanto, duas importantes lições para analistas, políticos, e opinião pública. Em primeiro lugar, é preciso superar a ideia preconceituosa de que o comportamento eleitoral dos mais pobres é movido apenas pela política de transferência de renda da vez. Assim como os eleitores das demais faixas de renda, os eleitores mais vulneráveis fazem uma leitura programática das disputas eleitorais que, ainda que feita com um vocabulário popular, passa por uma avaliação multifacetada do desempenho dos governantes. Em segundo lugar, é preciso refutar a ideia de que eleitores de baixa renda sejam tão carentes a ponto de estarem suscetíveis a terem seu voto determinado por benesses distribuídas durante o período eleitoral. Os mais pobres não apenas sabem identificar as tentativas de manipulação de seu voto, como também sabem tecer duras críticas aos políticos que agem como se pudessem trocar a autonomia política dos eleitores por esmolas. Essa leitura crítica e programática da política pelos setores populares não nasceu nessas eleições, ela sempre esteve presente. Quem sabe agora, com o fracasso do auxílio de R$ 600 para a campanha de Bolsonaro, nossos ouvidos fiquem mais atentos a escutá-la.

Mariana Borges Martins da Silva é pesquisadora de pós-doutorado no Nuffield College, Universidade de Oxford. Mariana é Ph.D em Ciências Políticas pela Universidade de Northwestern, nos Estados Unidos.  

Esse artigo foi elaborado no âmbito do projeto Observatório das Eleições 2022, uma iniciativa do Instituto da Democracia e Democratização da Comunicação. Sediado na UFMG, conta com a participação de grupos de pesquisa de várias universidades brasileiras. Para mais informações, ver: www.observatoriodaseleicoes.com.br.

 

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