Quilombola se torna acionista da Vale para alertar investidores sobre violações da mineradora
Em uma articulação inédita, quilombolas vão tentar convencer acionistas a suspenderem projeto da Vale em Minas Gerais
A Assembleia Geral Ordinária (AGO) de Acionistas da Vale, que ocorreu na manhã desta sexta-feira (28), contou, pela primeira vez, com a participação de uma liderança de comunidades quilombolas de Minas Gerais. Marlene Mateus de Sousa se tornou acionista recentemente e irá usar seu direito de voz e voto na Assembleia para denunciar violações da empresa nos estudos socioambientais do Projeto Serpentina, novo empreendimento da mineradora.
“É um marco importante. Apesar de ser um ambiente hostil, foi possível levar nossas demandas e a voz de todas as pessoas que foram invisibilidades pela Vale, que sofreram consequências, e vamos sofrer se não conseguirmos parar o novo projeto. Sem dúvida, é bom estar na Assembleia e levar a voz das comunidades negras, indígenas e de toda a nossa ancestralidade, pois nosso povo é como um corpo, e se parte do nosso corpo está doente, todo corpo sofre”, afirmou Marlene para a Mídia NINJA.
Como coordenadora da Comissão das Comunidades Quilombolas do Alto e Médio Rio Doce, Marlene Sousa representa mais de 40 comunidades tradicionais, entre quilombolas e indígenas, que devem ser afetadas diretamente pelas obras e operação do megaprojeto da companhia, de extração e transporte de minério de ferro.
Projeto afeta 11 cidades mineiras
A implementação do projeto atingirá populações, modos de vida e o meio ambiente de 11 cidades mineiras – Antônio Dias, Carmésia, Conceição do Mato Dentro, Dom Joaquim, Itambé do Mato Dentro, Morro do Pilar, Nova Era, Passabém, Santa Maria de Itabira, Santo Antônio do Rio Abaixo e São Sebastião do Rio Preto.
“Como mulher preta, quilombola e coordenadora da comissão, trabalho para que o rio Doce e seus afluentes não sejam palco de mais um crime. Vimos como foi devastadora a tragédia em Mariana para as comunidades. Para os povos tradicionais, o rio é uma divindade. Não se trata só de uma terra, mas de um território sagrado”, afirmou a liderança quilombola.
O projeto Serra da Serpentina prevê a instalação de cavas, uma usina, um mineroduto de 115 km, ligando Conceição do Mato Dentro a Nova Era, e pilhas de rejeitos. Para tirá-lo do papel, a Vale irá precisar de licenciamento do Estado de Minas Gerais.
A empresa já realizou o Estudo de Impacto Ambiental e o Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) e o entregou à Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad), no ano passado. No entanto, as comunidades atingidas não foram ouvidas, o que contraria a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), reforçada por uma resolução conjunta da Secretaria do Estado de Desenvolvimento Social e da Secretaria de Desenvolvimento Sustentável do Estado de Minas.
Todos os dados do EIA/RIMA são secundários, ou seja, a empresa não enviou equipes para fazer o levantamento das informações in loco.
Além disso, há divergências entre o que está no EIA/RIMA e o que a empresa declarou para as autoridades estaduais. Em documento enviado à Diretoria Regional de Regularização Ambiental Supram – Jequitinhonha, a Vale declara que não há comunidades quilombolas ou indígenas localizadas na área considerada passível de prejuízos durante as obras e a operação, o que contraria os limites definidos pela legislação (Portaria Interministerial 60/2015).
“A mineradora apresenta informação falsa ao órgão ambiental competente e é desmentida por seu próprio EIA/RIMA. Isso, em tese, pode configurar o crime previsto no artigo 69-A da Lei de Crimes Ambientais (Lei Federal n. 9.605/98)”, completa o especialista Matheus Leite, advogado da Federação Quilombola.
Diante do descumprimento dessas regras, a Comissão de Comunidades Tradicionais decidiu entrar na Justiça com ação contra a Vale e o Estado de Minas Gerais, pedindo a suspensão do Projeto Serpentina.
Além disso, será realizado, em maio, um fórum para reunir as lideranças das 51 comunidades tradicionais que devem ser afetadas pelo projeto da Vale. A intenção é traçar estratégias de resistência ao avanço do empreendimento da mineradora.
Acionistas críticos
A participação de Marlene Mateus de Sousa na AGO da Vale faz parte de um movimento da Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale para alertar os investidores sobre os riscos financeiros que eles correm com as violações de direitos humanos e ambientais cometidos pela empresa.
Além de denunciar o Projeto Serpentina durante a Assembleia, os acionistas críticos, como o grupo se auto nomeia, irão votar contra a aprovação do relatório administrativo de 2022, em função de outros quatro assuntos.
Um dos votos contrários diz respeito à falta de transparência em relação à dívida líquida relacionada aos desastres de Brumadinho e Mariana. A Fundação Renova, que faz a administração das indenizações, teve todas as prestações de contas reprovadas pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), o que motivou o órgão a pedir a sua extinção ainda em 2021.
A falta de informações também é apontada em relação aos projetos de expansão ferroviária e portuária no Estado do Maranhão. Outro ponto que requer mais detalhes é a redução de 46,4%, em comparação a 2021, no orçamento do Programa de Descaracterização, que muda as estruturas de barragens construídas em cumprimento à Lei Mar de Lama Nunca Mais.
Outro tema que será levado pelos acionistas críticos são os impactos causados pelo projeto níquel Morowali, na Indonésia. A população local vem denunciando constantemente a poluição causada pela mineradora. Testes de qualidade de água realizados recentemente apontam concentração de metais pesados muito acima do permitido pela Organização Mundial de Saúde (OMS).