57 famílias aguardam a regularização do território secular que fica às margens do Velho Chico.

Por Indi Gouveia / Mídia NINJA

Casas de adobe, alvenaria, tecnologias de captação de água de chuva, energia elétrica e outras políticas públicas já chegaram há um tempo no Acampamento Rio São Francisco, do Quilombo da Lapinha, comunidade localizada em Matias Cardoso, Norte de Minas Gerais. No entanto, o que as 57 famílias mais aguardam é a regularização do território secular que fica às margens do Velho Chico.

No local, crianças, jovens, casais, mulheres e homens constroem e reconstroem diariamente a história que começou com os seus antepassados no início do século XVII:

“Tudo que tem aqui foi construído pelas mãos nossa: barraco, as roças que nós têm é tudo a gente que faz, tudo na mão, na enxada, na foice e a coragem nossa que Deus deu para cuidar disso aqui. ”, conta João Batista Pinto, quilombola.

Segundo dados históricos, o processo de exploração latifundiária no Norte de Minas causou o encurralamento de diversas comunidades na região, fazendo-as migrarem para áreas menores e menos férteis. Foi nos anos de 1970 que os remanescentes quilombolas do Quilombo da Lapinha foram expulsos das suas terras e em 2005, ainda atingidos por esses conflitos agrários, a comunidade se organizou para lutar pelo território ancestral, retomando a Fazenda Casa Grande, pertencente, na época, a empresa Fazendas Reunidas do Vale do São Francisco – FAREVASF.

Segundo Marco Antônio de Souza, advogado da comunidade, a área é de interesse da união e deveria ter suas questões resolvidas por órgão federais, já que constitucionalmente está em perímetro ribeirinho. O advogado conta que a permanência da comunidade, em 2005, se deu a partir de um acordo com a empresa para dar tempo ao INCRA realizar os procedimentos de delimitação e titularização do território. Mas em 2010, o Instituto Estadual de Florestas – IEF, adquiriu a Fazenda com o intuito de unir a área ao Parque Estadual Lagoa do Cajueiro – unidade de proteção integral.

“O Parque não foi concluído e ficou o restante de uma certa quantidade de pagamento do Estado para a FAREVASF. Em decorrência desse não pagamento a empresa também está forçando a retirada do povo. Ocorre que recentemente a gente conseguiu uma ordem de suspensão dessa reintegração de posse e a comunidade ganha um folego, que a gente imagina aí de uns 60 dias ou mais. Nesse tempo estamos sentando diretamente com o IEF, que trouxe uma fala que é possível a gente chegar em um acordo”, explica o advogado Marco Antônio.

“A gente ganhou mais tempo sem que medidas drásticas tenham que ser tomadas”

A frase acima foi dita por Cláudio Vieira Castro, da Diretoria de Unidades de Conservação do IEF , em uma reunião no Quilombo da Lapinha no dia 2 de agosto, quatro dias depois que a ordem de despejo foi suspensa temporariamente. O representante do Instituto foi até a comunidade para ouvir as famílias, depois de saber que existia a decisão judicial.

“Ninguém conseguiu me explicar ainda, juridicamente, como essa ordem foi possível, como isso aconteceu, mas aconteceu, transitou em julgado, passou pelas instâncias da justiça e o que a gente tem hoje de realidade é uma ordem de retirada. Só que a posição do IEF, a partir dessa nova gestão que chega, é de que não é assim que se resolve esse tipo de situação. ”, disse o diretor à comunidade.

No governo Pimentel, em 2017 houve essa mesma movimentação para que as famílias fossem expulsas do local que faz parte do território tradicional quilombola, mas segundo o atual diretor de unidades de conservação, é pouco provável que o IEF tenha um posicionamento como o que teve na gestão passada: “O que a gente está insistindo é que lá na Mesa de Diálogo, esses outros [áreas sociais do Governo de Estado] também estejam sentados à mesa, para a gente poder conversar e encontrar uma solução, porque não dá para você enxergar esse problema só com um olho, você tem que tirar a venda e enxergar que a questão é maior.”, defendeu Cláudio, que acredita que tem de haver um equilíbrio entre a conservação ambiental e o direito dos Povos e Comunidades Tradicionais, que são assegurados pela Constituição Federal.

Próximos passos

No dia 7 de agosto, quarta-feira, será realizada em Belo Horizonte, uma Mesa de Dialogo para encaminhamentos com as questões que envolvem a comunidade. Para as famílias o momento é turbulento por não saberem o que vai o acontecer, mas a fé e as crenças herdadas dos seus antepassados os fazem acreditar na permanência no território e que poderão usufruir da área além dos 22 hectares e que pelo Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), publicado pelo INCRA, têm direito.

“Deus sabe o que faz, ele vai pôr a mão e vai dar sabedoria para os que estão lá nos defendendo, para que possam falar as palavras certas, as coisas certas, nas horas certas, porque tudo é na hora de Deus, nada é no nosso tempo. Eu tenho certeza que a vontade Dele é de nos ver pisando nesse chão, nessa terra com nossos filhos fazendo a nossa tradição. ”, conta Damiana, jovem quilombola mãe de quatro filhos.

Lapinha luta e resiste

A comunidade, que sempre cuidou e cuida do território de maneira sustentável, aguardam que o Governo do Estado de Minas Gerais, reverta a decisão definitivamente e cumpra o direito constitucional de acesso à terra, que em seu artigo 68 do ato das disposições constitucionais transitórias, reconhece o direito destas comunidades à titulação de seus territórios tradicionais, cabendo ao Estado apenas o dever de garantir a fruição desse direito através do registro em cartório da posse coletiva do mesmo.

Lapinha vem recebendo historicamente apoio de organizações e movimentos sociais, eclesiais e de luta como o Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas, Comissão Pastoral da Terra Articulação Rosalino Gomes, entre outras.

Neste contexto, quem também está apoiando a comunidade é o poder público local, que tem se afirmado como parceiro da comunidade na defesa do território. “A prefeitura está pronta para apoiar a comunidade, agora de imediato com essa medida suspensiva, mas também apoia a permanência aqui e também nos 1.400 hectares até que se resolva esse problema todo com o território maior. A gente sabe que as pessoas precisam produzir, precisam trabalhar, nós temos que dá essa dignidade humanas para eles.”, afirmou Edmarcio Moura Leal, prefeito de Matias Cardoso.