Trabalhadores sem terra que ocupavam áreas agrícolas improdutivas e degradadas foram finalmente assentados – e descobriram a generosidade da terra através da agrofloresta

Foto: Tuane Fernandes / Mídia NINJA

Por Ignacio Amigo – The Guardian
Tradução:  Clarisse Meireles para Carta Maior

 

Um dia, em 2005, Zaqueu Miguel estava dirigindo um ônibus nos arredores de Ribeirão Preto, no sudeste brasileiro, quando percebeu um grupo de pessoas acampadas perto de uma propriedade rural.

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Ele descobriu que o acampamento se chamava Mario Lago, e que aquelas pessoas exigiam a expropriação da terra – vazia e degradada – para que pudessem cultivá-la. Miguel, que cresceu em uma fazenda e sempre sonhou em ter seu pedaço de terra, não pensou duas vezes. Fez uma pequena mala e se juntou a eles, mantendo emprego e família na cidade, mas passando as noites em uma barraca no acampamento.

A desigualdade fundiária é um problema sério no Brasil. Um relatório recente da Oxfam revelou que quase 45% das terras agrícolas do Brasil pertencem a apenas 1% dos proprietários. É neste contexto que o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) luta pela reforma agrária desde a década de 1980. Ocupações como a Mario Lago são uma de suas estratégias para pressionar o governo a agir, uma vez que a constituição brasileira prevê a desapropriação de terras improdutivas ou sem uso social, ou onde foram cometidos crimes ambientais.

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No caso da ocupação Mario Lago, a terra estava ambientalmente degradada e os proprietários sob investigação por crime de desmatamento. A propriedade fica em uma área de recarga de águas subterrâneas do aquífero Guarani, uma das maiores reservas de água doce do mundo. Esses fatos desequilibraram a balança em favor dos ocupantes e, em 2007 – quatro anos após o início da ocupação – o MST e o governo chegaram a um acordo de expropriação da terra.

A família de Miguel e 263 outras receberam um lote de 1,7 hectares cada uma. O acordo incluía condições que transformariam radicalmente a terra e a forma como os agricultores a trabalharam: eles deveriam reflorestar 20% da área com árvores nativas, e 15% da terra deveria ser convertida em sistemas agroflorestais – SAFs, a integração de árvores e arbustos com a agricultura e a criação de animais – e a terra deveria ser trabalhada coletivamente. Com o tempo, Mario Lago se tornaria uma vitrine agroflorestal.

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Miguel é um dos 50 agricultores que hoje utilizam este sistema de gestão em suas terras. “Em uma floresta, quando uma árvore cai, abre-se uma pequena clareira onde surge uma infinidade de formas de vida. Enquanto na natureza isso ocorre de vez em quando, nos SAFs, fazemos isso acontecer com mais frequência”, diz ele. “Temos estudos que mostram que esse impulso nas clareiras, este ciclo de cair e crescer, é muito melhor para o clima, o solo e a água”.

Mas seguir os métodos da natureza pode parecer às vezes contraintuitivo – ou mesmo impossível. Miguel lembra que, nos primeiros dias, muitos agricultores resistiram a alguns dos preceitos agroflorestais, como plantar grama como um primeiro passo para recuperar a terra, que estava gravemente degradada por monoculturas de cana-de-açúcar.

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“O fazendeiro pena para limpar o lote, e quando finalmente consegue remover toda a cana com a enxada você diz que ele tem que plantar grama. O cara quer te matar!”, diz Miguel.

Embora não haja receita única para os SAFs, práticas comuns incluem a poda periódica das árvores e o uso de seus galhos e folhas para cobrir o solo, além da combinação de culturas para permitir sinergias entre espécies. Nelson Correa, um dos pioneiros dos sistemas agroflorestais no assentamento Mario Lago, define-os como uma forma de incorporar a produção de alimentos aos processos da natureza. “Com a agrofloresta, trabalhamos para regenerar o meio ambiente”, explica. “A produtividade é uma consequência dessa regeneração”.

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“Eu precisava de uma parcela inteira para a alface, outra para o repolho…”, lembra Miguel. “Hoje, no mesmo espaço, planto cinco vezes mais do que plantava antes. E planto coisas como milho, que nunca pensei que pudesse ser cultivado numa horta”.

Outro agricultor que se converteu à agrofloresta é José Ferreira, conhecido como Paraguai. “Achava que o MST era um bando de vândalos”, confessa Paraguai. “Mas o movimento nos ofereceu grande conhecimento do mundo. Para mim, é o legado mais importante. Além de lutar pela terra, plantar e cuidar da natureza, eles têm um forte lado social”.

Com a agrofloresta, Paraguai diz que pode colher, em uma única semana, salsa, cebolinha, tomate, chicória, alface, rúcula, repolho, brócolis e alho-poró. “Quem entende os processos dos SAFs não volta para a agricultura convencional”.

Foto: Ignacio Amigo

Para vender sua produção, 26 das famílias criaram a cooperativa Comuna da Terra, que entrega cestas semanais aos consumidores da cidade, modelo conhecido como agricultura apoiada pela comunidade (community-supported agriculture, CSA). A cooperativa também leva seus produtos para feiras e mercados de rua.

Toda segunda-feira, o conteúdo das cestas é decidido pelos agricultores, com base em sua produção. Os consumidores do modelo CSA têm um compromisso de um ano e pagam uma quantia mensal fixa, dividindo os riscos com os agricultores e proporcionando estabilidade econômica.

“Nossos consumidores vêm aqui, nos ajudam a plantar e colher, participam de nossas reuniões”, conta Miguel. “Na verdade, nem os chamamos de consumidores, mas de coprodutores”.

Ele diz que a maioria das fazendas agroflorestais de Mario Lago são economicamente viáveis e geram renda suficiente para sustentar as famílias. Provavelmente, parte do sucesso vem de um modelo de negócios que corta intermediários, com todas as receitas indo diretamente para os agricultores.

O assentamento Mario Lago está se tornando rapidamente um ator importante na cena agroflorestal do Brasil, que começa a ver os SAFs como uma estratégia potencial para o enfrentando de problemas ambientais urgentes. Apesar das boas notícias recentes, o Brasil enfrenta desde 2013 uma preocupante tendência de crescimento nas taxas de desmatamento na Amazônia. E após um ano de seca e incêndios, os números de 2017 devem piorar.

Foto: Ignacio Amigo

Alguns especialistas defendem que a promoção de sistemas agroflorestais no lugar de pasto para gado na Amazônia favoreceria o uso mais sustentável da terra, reduziria o desmatamento e garantiria abrigo para a biodiversidade tropical. A agrofloresta também pode ser uma alternativa agrícola interessante para o nordeste semiárido do Brasil e outras áreas ameaçadas pela desertificação, onde o sistema poderia ajudar a restaurar solos pobres e degradados.

“No Brasil, o campo é completamente desprovido de natureza. É dominado pelo agronegócio, que tem a filosofia de dominar a natureza. Precisamos levar a natureza de volta para o nosso campo”, diz Correa.

Nos últimos meses, Miguel realizou seu sonho. Doze anos depois de se juntar ao acampamento e dez anos depois de conseguir sua terra, ele terminou de construir sua casa – e sua esposa e dois filhos finalmente se mudaram para lá. Ele diz que o MST e a agrofloresta mudaram sua vida.

“Eu era muito consumista; hoje, as questões financeiras são o que menos importa para mim. O que gosto é de estar com as pessoas, conversar com elas e divulgar esse conhecimento… para mudar o mundo”.