Em Anapu (PA), pistoleiros fizeram uma ameaça direta ao futuro das crianças da comunidade do Assentamento Dorothy Stang, queimando mais um símbolo de esperança. Na madrugada desta sexta-feira (19), criminosos empreenderam um novo ataque às famílias, queimando a escola Paulo Anacleto. Estas, por sua vez, tiveram que se esconder no mato, acuados por incontáveis tiros que foram disparados pelos pistoleiros para impor o medo.

No local, vivem 54 famílias, 25 crianças. Uma moradora que não quer se identificar temendo pela sua vida, disse que a filha chorava, enquanto ao longe via arder em chamas a sua escola. As crianças ainda se recuperam do ataque recente, em que casas foram queimadas. Mais um baque para elas, que são submetidas ao terror da violência que se acirra a cada dia.

Ao comentar o ocorrido nesta madrugada, a ativista e jornalista, Eliane Brum destacou que as crianças “já estavam totalmente traumatizadas e foi difícil convencê-las a voltar à escola”. Ela disse que os grileiros queimam a escola porque ela simboliza “posse da terra. É permanência, é construção de vida, é movimento de futuro no presente. Os camponeses construíram a escola na terra onde vivem e da qual vivem”.

As famílias do Lote 96 sofrem com a omissão do Estado, lembrou a jornalista.

“O Incra tinha criado o Assentamento Dorothy Stang, no lote 96. E depois voltou atrás por pressão da grilagem. É isso que acontece quando o Estado fica na mão das milícias, quando o presidente é um criminoso que estimula a destruição da floresta amazônica”.

Ela conta que a escola se chama Paulo Anacleto em homenagem a um vereador do PT assassinado no final de 2019 na praça central de Anapu, diante do filho pequeno.

“A vida dessas crianças é tecida pela violência. Que futuro se espera do Brasil? Reconstruir a escolinha de Anapu, imediatamente, é responsabilidade coletiva de tod@s”, cobrou.

Procurada pela Mídia Ninja, a Defensoria Agrária de Altamira, que atua no caso, disse que depois que concluir os atendimentos e procedimentos, se manifestará à imprensa.

Pistoleiros queimaram casas

Antes desta sexta-feira (19), em maio deste ano os moradores também tiveram que sair às pressas de suas casas. Se passando por policiais, no dia 11, pistoleiros queimaram as casas de camponeses do lote 96. A Justiça do Pará, por sua vez, negou que havia uma ordem de reintegração de posse para o local. Vale ressaltar, as ordens de reintegração de posse estão suspensas em todo o país.

Uma das vítimas dessa ação criminosa, que perdeu tudo, disse que eles chegaram na casa dela, mandando ir embora.

“Tocaram fogo na minha casa. Disseram que era uma reintegração de posse e que ia sair um por um, mesmo se não quisesse. E se desse a cara para eles ia morrer”.

A vizinha dela, chegou a questionar se eles tinham um mandado de busca e apreensão. “E ele mostrou a arma para mim. Eu pedi o documento, se ele tinha a reintegração a posse e ele me mostrou a arma: ‘o documento tá aqui. Eu com minha filha chorando do lado, pedindo socorro, a casa pegando fogo, não tinha como a gente tirar nada de dentro”.

Casas foram queimadas em ataque de pistoleiros no mês de maio (Reprodução)

Anapu é o mesmo município onde a missionária Dorothy Stang foi assassinada em 2005. A região é marcada pela violência que resulta da disputa fundiária. Invasores seguem aterrorizando pequenos agricultores em nome da indústria da extração ilegal de madeira e grilagem. A área do Lote 96 é pública federal e o pretenso dono teve o título de propriedade cancelado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a pedido do MPF, em ação civil pública. Então, virou assentamento de reforma agrária.

Ameaças de morte

Lideranças da comunidade também são ameaçadas de morte o tempo todo, caso do líder camponês Erasmo Theofilo, que foi alvo delas, mais uma vez na semana passada. Em entrevista à Mídia Ninja, em reportagem recente, ele contou que está proibido de ir à comunidade. Ele foi muito importante na luta das famílias, para que o lote 96 fosse reconhecido legalmente como um assentamento.

“Eu estou sendo expulso da minha casa. Não posso mais ir a Anapu, porque se eu for, vão me matar. Minha família teve que sair também, meus pais foram atacados. Se não tivessem com os companheiros, não sei o que teria acontecido. Nem na Romaria da Floresta eu pude ir, porque eles teriam que aumentar o nível de segurança, pelo risco de ataques”, contou em entrevista.

 

Mídia Ninja conferiu situação in loco

Semanas depois do ataque, a Mídia NINJA viajou até o Pará junto a uma comitiva de mídias organizadas pelo @342amazonia, para acompanhar a visita do juiz de Direito da Vara Agrária de Altamira, Antônio Fernando de Carvalho Vilar, no lote 96. O magistrado foi até o local para verificar a situação das famílias que foram atacadas.

É urgente a consolidação do assentamento

O lote 96 se tornou legalmente um assentamento da reforma agrária, quando no dia 28 de junho foi publicado no Diário Oficial da União (DOU) “a proposta de destinação, para assentamento de agricultores, dos lotes 96 e 97 do imóvel rural denominado Gleba Bacajá (Parte)”.

Mas ao que parece, sob pressão de grileiros, a superintendência regional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), no oeste do Pará, enviou à presidência do órgão, pedido de revogação da Portaria Nº 1.319, de 28 de junho de 2022, que cria o Projeto de Assentamento Dorothy Stang.

A Comissão Pastoral da Terra destaca que a decisão de criação do PA, que havia sido celebrada pelos movimentos de luta pela terra na região, “recebeu forte pressão dos grupos ligados ao agronegócio”.

Quem assinou o despacho endereçado ao presidente do Incra, Geraldo de Melo Filho, é o diretor de Desenvolvimento e Consolidação de Projetos de Assentamento, Giuseppe Serra Seca Vieira. No documento, alegou que a revogação do ato se devia à “necessidade de qualificar melhor o procedimento administrativo”. Ele justificou que ocorreu “um erro de instrução por parte da Diretoria de Desenvolvimento e Consolidação de Projetos de Assentamento”.

Defensores reagiram

Em uma Recomendação Conjunta ao presidente do Incra, defensores Públicos da União e do estado do Pará reagiram à decisão e recomendaram ao Incra que fosse mantida a criação do PA, solicitando ao Incra que “deixe de adotar medidas que impliquem na revogação ou invalidação da portaria”. Eles apontaram fragilidade de argumentos do diretor, para justificar o pedido de revogação da criação do Projeto de Assentamento. O documento assinado pelos defensores afirma que não é necessária a declaração de interesse social.

Eles alertaram que a adoção precipitada de novo entendimento poderia instaurar um cenário de total insegurança jurídica em relação a outros atos do INCRA que já produzem efeitos, bem como incentivar os conflitos fundiários violentos. Foi justamente o que voltou a acontecer.