Secretaria indígena na Presidência é melhor do que ministério
Terminou na terça-feira passada a 18ª edição do Acampamento Terra Livre, que reuniu, durante onze dias, sete mil representantes dos povos indígenas de todas as regiões do Brasil. No início do ano eleitoral, foi um momento importante para protestar contra as políticas do governo Bolsonaro, que não demarca e promove a invasão das terras indígenas. […]
Terminou na terça-feira passada a 18ª edição do Acampamento Terra Livre, que reuniu, durante onze dias, sete mil representantes dos povos indígenas de todas as regiões do Brasil. No início do ano eleitoral, foi um momento importante para protestar contra as políticas do governo Bolsonaro, que não demarca e promove a invasão das terras indígenas. Os protestos também condenaram as iniciativas agressivas aos direitos indígenas que tramitam no STF, como a tentativa de limitar a oficialização desses territórios ao marco temporal de 1988, e no Congresso, como o PL 191, que pretende legalizar a predação mineral e outras formas de apropriação, por terceiros, dos seus recursos naturais.
Neste ano, o ATL incluiu na sua pauta o debate sobre “aldear a política”, com foco na participação indígena no processo eleitoral e nas instâncias de decisão das políticas públicas. Apresentaram-se dezenas de candidatas e candidatos indígenas a deputado estadual e federal, de vários estados e por diversos partidos políticos. O movimento espera eleger uma “bancada do cocar”, ampliando sua representação hoje restrita à deputada federal Joenia Wapichana (Rede-RR).
Um ponto alto do evento foi a visita do ex-presidente Lula, candidato à Presidência pelo PT. Sendo Lula o principal oponente de Bolsonaro, o presidente mais anti-indígena da história recente, a sua presença gerou forte expectativa, até mesmo de povos impactados pela construção de hidrelétricas na Amazônia nos governos petistas. Sua comitiva foi muito aplaudida pela plenária lotada.
Ministros & ministérios
Lula foi recepcionado com uma fala da Sonia Guajajara, integrante da coordenação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que agradeceu a visita e fez um breve resumo da trajetória de resistência dos povos indígenas. “Houve um tempo em que nós não queríamos assumir a Presidência da Funai. Mas, agora, é um novo tempo e nós queremos, sim, a Presidência da Funai, nós queremos participar da condução da Sesai [Secretaria Especial de Saúde Indígena”, disse ela. “Nós queremos assumir ministérios, nós podemos assumir a condução de qualquer política pública nesse país”, acrescentou.
Em seu discurso, Lula agradeceu a acolhida e destacou a capacidade de mobilização do movimento indígena. Afirmou que vai revogar os atos do atual governo contrários aos direitos indígenas e de desmonte das políticas indigenistas. Prometeu ainda retomar as demarcações, retirar invasores e incluir indígenas nas equipes que preparam o seu programa de governo e o processo de transição.
Pegando a onda da fala da Sônia, Lula sacou essa: “Vocês não são crianças para serem tuteladas. Vocês são povos inteligentes que cuidavam deste país antes de a gente chegar aqui. E agora vocês me deram uma ideia: se a gente criou o Ministério da Igualdade Racial, se a gente criou o dos Direitos Humanos, se a gente criou o Ministério da Pesca, por que a gente não pode criar um ministério para discutir questões indígenas?”
E continuou: “Eu quero que vocês saibam, não sei quem, mas se preparem, porque alguém vai ter que assumir o ministério e não será um branco, como eu, ou uma galega como a Gleisi ([Hoffmann, presidente do PT]; terá que ser um índio ou uma índia, terá que ser alguém para poder dirigir, da mesma forma que fizemos com o Ministério da Igualdade Racial”.
Implicações
A ideia de criar um ministério para as “questões indígenas” é generosa e foi intensamente aplaudida pela plateia. Ela sinaliza para uma presença indígena no mais alto escalão do governo. Porém, como há demandas indígenas relacionadas a vários ministérios, essa ideia precisa ser amadurecida para não se voltar contra os interesses dos povos originários.
A primeira questão que se coloca é a da própria Funai: ela ficaria vinculada a esse novo ministério? Se a resposta for ‘sim’, a pergunta seguinte será sobre o encaminhamento dos processos de demarcação, que hoje seguem da Funai para o Ministério da Justiça e, dele, para a Presidência da República. A competência para reconhecer os limites que serão demarcados passaria a ser do ministro indígena? Isso reforçaria ou fragilizaria o processo? A mesma pergunta seria cabível sobre a relação com o Judiciário, que acumula pendências, ou sobre a mobilização da Polícia Federal na proteção territorial.
O maior orçamento destinado a demandas indígenas é o da Sesai. Não faria sentido transferi-la do Ministério da Saúde, com estrutura funcional e participação no orçamento consolidadas, para um novo ministério.
Há demandas indígenas em outros órgãos. Antes dos retrocessos impostos pelo atual governo, projetos dos povos originários vinham tendo acolhimento crescente nas políticas e fundos ambientais. O mesmo ocorre, ou deveria ocorrer, em relação a outras áreas, como questões ligadas ao fomento produtivo, tecnologia e infraestrutura.
Polo de articulação
Em outras palavras, as demandas indígenas são transversais e não cabem em um ministério de cunho setorial, “para discutir questões indígenas“. Elas vão do Ministério da Defesa à Previdência Social. Reestruturar a Funai, a Sesai, e construir novas políticas, seria o caminho a seguir no pós-Bolsonaro. O que falta é um forte polo de articulação das ações dos vários órgãos e ministérios competentes, que tenha poder de convocação sobre todos eles.
As melhores experiências de articulação interministerial, inclusive nos governos petistas, ocorreram a partir da própria Presidência da República. Não do gabinete presidencial, mas da Casa Civil, da Secretaria de Governo ou de outras secretarias especiais de assessoria direta ao presidente. Estão no mesmo nível hierárquico dos ministérios, mas ficam baseadas no Palácio do Planalto e exercem funções de coordenação, que não substituem, não duplicam e não subordinam a atuação dos demais órgãos competentes, mas promovem iniciativas conjuntas, informações e recursos compartilhados, potencializando os resultados.
A experiência do Ministério da Igualdade Racial foi positiva e merece ser avaliada. Mas as políticas indigenistas avançaram de formas bem distintas, embora também interessem aos povos indígenas as ações de combate ao racismo e de promoção da igualdade racial. Creio que a comparação do Lula vale mais como indicação da importância que ele quer dar às políticas voltadas para esses setores do que como formato administrativo já calibrado para o seu projeto de governo.
Indígenas no poder
Outra questão é a ocupação de espaços institucionais de poder por pessoas indígenas. Tem razão a Sonia ao apontar uma inflexão histórica na percepção das populações originárias sobre isso. A cada eleição, há mais candidaturas e mandatos representando essas comunidades. Também é crescente a presença de profissionais indígenas em funções de confiança na Funai, na atenção à saúde indígena, assim como também ocorre nas escolas, nas universidades e em outras carreiras profissionais.
Lula poderia ter tido outras ideias: por exemplo, escolher uma pessoa indígena para o Ministério do Meio Ambiente, como forma de sinalizar a importância das terras indígenas numa eventual estratégia nacional para enfrentar a emergência climática. Ou para o Ministério da Cultura, reconhecendo a contribuição indígena para a diversidade cultural brasileira. A Sonia falou em “ministérios”, no plural, destacando que há quadros qualificados para exercer funções diretivas em várias áreas.
No entanto, pelo menos três riscos devem ser considerados nessa história: (1) que a disputa por cargos públicos agrave e exponha divergências entre indígenas, desgastando o capital político acumulado pelo movimento nos últimos anos; (2) que a migração de quadros para o governo esvazie e enfraqueça as organizações, sobrepondo as razões de Estado aos objetivos programáticos; e 3) que as limitações burocráticas e as contradições próprias de governos heterogêneos gerem frustrações e acirrem conflitos entre grupos e pessoas indígenas. Nada disso difere muito dos riscos que afetam outros setores, mas os povos devem manter, mais do que nunca, a sua autonomia política para potencializar as oportunidades de avanços.