O culto a Maria foi moldado para atender ao que o masculino deseja controlar
O cristianismo é uma religião masculinocêntrica – estou tomando a liberdade de “inventar” uma palavra para dar conta do que pretendo deixar mais explícito: tudo gira em torno dos homens, para os homens e por causa dos homens.
Em seu livro Jesus: esse grande desconhecido, Juan Arias enfatiza que não dá para ignorar, independentemente da fé que se tenha ou mesmo na ausência dela, o personagem que convencionou a divisão do tempo no ocidente em antes e depois dele. Recentemente finalizei a leitura de Deus: uma biografia, o potente livro de Jack Miles sobre a personalidade da divindade suprema de origem judia, mas fundamental ao cristianismo. Mas vejam como se dão essas relações religiosas nas culturas onde elas ganham graus significativos de importância. O cristianismo é uma religião masculinocêntrica – estou tomando a liberdade de “inventar” uma palavra para dar conta do que pretendo deixar mais explícito: tudo gira em torno dos homens, para os homens e por causa dos homens. As mulheres, quando aparecem, são colocadas como coadjuvantes. E se alcançam protagonismo em algumas situações, como Maria Madalena a testemunha do grande evento que deu todo sentido ao cristianismo – a ressureição de Jesus – se deu um jeito de colocá-la em uma posição duvidosa. Mesmo Maria, a mãe de Jesus, teve a sua condição de mulher esvaziada. É mãe, mas sempre dócil – a iconografia, especialmente as pinturas clássicas, a apresenta com olhos baixos; capaz de suportar o sofrimento – como na imagem que mostra seu coração transpassado por espadas – e o mais importante: assexuada.
“Eis que uma virgem conceberá”. Essa profecia foi crucial para que a vida de Maria mudasse radicalmente, segundo as narrativas de São Mateus e São Lucas. De acordo com eles, um anjo apareceu para Maria e lhe pôs a par de que ela havia sido escolhida para ser a mãe do filho do “Deus Altíssimo” e mais: ele seria o libertador político do seu povo. Maria mostra que é alguém de raciocínio aguçado, pois logo questiona como essa concepção vai acontecer, pois é virgem. E Gabriel diz que será tudo feito de forma milagrosa. A aparição e discurso de um anjo não devem ser algo para se encarar tão tranquilamente ainda mais com uma proposta capaz de levar à morte em meio a um castigo público.
Se ainda hoje ser mulher em países onde a maioria da população se proclama cristã e justificam as várias violências contra nós usando a bíblia, na Palestina do tempo de Maria também não havia facilidades para quem recebia essa classificação de gênero. Mulheres eram, por exemplo, consideradas impuras quando menstruavam e necessitavam passar por ritos cuidadosos para recuperar sua condição de “limpas” após o fluxo mensal. Quando pariam era a mesma coisa. Quem duvida pode conferir a citação do próprio São Lucas sobre a ida de Maria e José ao templo para as cerimônias de purificação não apenas do bebê, mas também da mãe.
Em orações pronunciadas por homens durante o dia se bendizia o “Altíssimo por não “lhes fazer mulher”. Mesmo casadas, elas não andavam ao lado dos maridos, mas sempre um passo atrás. Por qualquer erro ou até mesmo caso o marido estivesse querendo fazer um novo casamento se estava à mercê da temida ameaça: ser “repudiada” e, pior, acusada de adultério. Nesses casos, a pena de morte era o mais certo. A alternativa, se sobrevivesse, era a vida como prostituta, o que era um tipo de “morte”, pois seria uma pária.
Feminino sob pressão constante
Estas foram, portanto, as consequências sobre as quais Maria possivelmente pensou, mesmo que estivesse deslumbrada com as maravilhas descritas por Gabriel, caso aparecesse grávida sem estar devidamente casada. Qual seria a força da palavra de uma mulher dizendo que concebeu milagrosamente o “rei de Israel” contra as poderosas regras estabelecidas? E tinha mais um agravante: Maria estava noiva de um homem chamado José.
Mas, conta São Lucas , ela aceitou a proposta com a resposta que se tornou exemplo de obediência para mulheres nas comunidades cristãs: “Eis aqui a serva do Senhor. Faça-se em mim segundo a sua vontade”. De acordo com São Mateus, convencer José foi mais difícil. A princípio ele parece não ter acreditado na gravidez milagrosa e já traçava estratégias para romper o compromisso, mas sem fazer barulho. Por fim aceitou o papel de pai adotivo do filho de Deus e gerenciador de transtornos: teve que articular uma longa viagem para responder a um censo porque a profecia dizia que o Messias nasceria em Belém; com a mulher quase parindo não conseguiu hospedagem; e o Menino-Deus nasceu em um estábulo. Alguns milagres suavizam um pouco tanto drama: a visita de pastores, convocados por anjos, e a reverência dos reis astrônomos, os magos do oriente, que chegaram ao local de nascimento seguindo uma estrela.
Como se não bastasse tanta adrenalina, José é avisado em sonhos, novamente, que precisa sair urgentemente do país com a família e se refugiar no Egito. O rei Herodes, ao que se diz, deu a ordem de matar crianças até dois, pois os reis magos não voltaram para dizer a ele onde estava o que seria um concorrente à coroa. Esse episódio é o catalisador da angústia que vai acompanhar o jovem Jesus do evangelho ficcional de José Saramago e que provocou o seu “cancelamento” antes mesmo dessa instituição se fortalecer na era das redes sociais. Tanto que o único até agora autor de língua portuguesa que recebeu um Nobel de Literatura foi morar na Ilha de Lanzarote na Espanha. Uma injustiça ao autor de uma obra tão bela e extremamente respeitosa. Pesou o preconceito contra o “ateu” porque as críticas dirigidas ao livro de Saramago são na linha “não leu e não gostou”. Ah. Tem também um problema: no livro Jesus vive sua sexualidade ao lado de Madalena. Parte dos líderes cristãos, nas mais variadas denominações, tem horror a essa questão principalmente se envolve seus personagens sagrados. Alguns dos graves problemas no ocidente estão profundamente ligados a essa dificuldade em lidar com elementos tão naturais- corpo, desejo, sexualidade. Freud, inclusive, criou as bases para uma nova ciência ao mostrar isso.
O Jesus de Saramago, com uma personalidade contestadora tem respostas sempre ácidas para dirigir à mãe. É algo que está também muito presente nas narrativas evangélicas. Em São Lucas, por exemplo, ocorre no encerramento dessa primeira parte de sua biografia. Após perceber que Jesus não estava na comitiva que havia viajado a Jerusalém, José e Maria o encontram, três dias depois, aos 12 anos, discutindo com a elite do templo sobre religião. Ao ser repreendido, a resposta que ele dirige a mãe é, no mínimo, malcriada: “Eu não devo me ocupar das coisas do meu Pai?”. Eu fico imaginando o pobre José recebendo, ali, como um tapa, a revelação, em voz alta, do segredo familiar: ele é o pai adotivo, apenas. É também a despedida de José dos evangelhos. A tradição católica diz que, quando Jesus ressurge já adulto, ele já havia morrido. Outras narrativas apresentam Maria como sua segunda esposa, pois afirmam que era viúvo ao se casar com ela e daí explica-se as irmãs e irmãos de Jesus mencionados em trechos dos evangelhos. Mas com a mãe, Jesus não adota, em público, uma relação afetiva. Pelo contrário.
Repreensões públicas
Quando Maria comunica a Jesus que não tem vinho, dando a deixa para que ele faça o seu primeiro milagre, no casamento de Caná, a resposta dele é na linha: “Mulher. E o que nós temos a ver com isso”? Maria não se dá por vencida e diz para os empregados dos donos da casa onde acontece o casamento: “Fazei o que ele vos disser”. Os teólogos dizem que tudo isso é apenas para que Maria ensine sobre como se comportar diante das exigências que o cristianismo coloca, mas até hoje eu não consigo compreender porque essa acidez constante quando Maria está envolvida.
Em outra ocasião, ao ser informado que a mãe e os irmãos- para a Igreja Católica são “primos”- estão à sua procura, Jesus responde: “Quem é minha mãe e quem são meus irmãos? Minha mãe e meus irmãos são os que fazem a vontade do meu Pai”. Apenas morrendo na cruz e com Maria acompanhando seu sofrimento, Jesus parece ter um gesto de carinho em direção a ela ao apontar para João, o discípulo mais novo do seu grupo, e dizer que a partir daquele momento ela seria a sua mãe e ele o filho. O evangelista arremata contando que João a levou para a sua casa.
Rainha da Igreja
Maria, possivelmente, ficaria restrita ao papel do veículo para o cumprimento da profecia do nascimento do Messias por uma virgem, mas os planos de expansão do catolicismo ao longo dos séculos incluíram povos onde o culto ao feminino era central. Foi assim com os grupos da hoje Grã Bretanha que estranharam um deus masculino, morto e, portanto, derrotado. A coleção As Brumas de Avalon, de Marion Zimmer Bradley, dão uma dimensão desse fenômeno.
No catolicismo, aos poucos, Maria ganhou importância e o título de “Nossa Senhora”, uma espécie de rainha que tem o poder de atuar como mediadora da piedade do seu filho especialmente. Assim são muitas as invocações, nome que se dá aos títulos para recorrer a ela. Tem invocações, inclusive, para situações específicas: Nossa Senhora do Parto, em casos de sofrimento e risco; Nossa Senhora das Dores, uma invocação que já aponta para o tamanho do desespero de quem recorre; Nossa Senhora da Guia, para os casos em que se precisa de luz; Nossa Senhora da Boa Morte porque já que é algo inevitável que aos menos seja tranquilo.
Há ainda o fenômeno das aparições, que leva a Igreja Católica a adotar um comportamento cuidadoso. A instituição oficializa umas e apenas monitora outras. Nas aceitas, Maria assume as características que, quando vamos analisar mais de perto, coincide com grupos populacionais que estão passando por algum tipo de opressão afinal o catolicismo resiste há 2020 anos entendendo profundamente o que é política de forma ampla.
Em 1917, em meio à Primeira Guerra Mundial, três crianças camponesas de Portugal, – Lúcia, Jacinta e Francisco- disseram ter visto Nossa Senhora. As características da imagem relacionada a essa aparição não diferem das que possuem as mulheres da localidade de Fátima, onde hoje está um dos mais importantes santuários do mundo. Em Guadalupe, no México, o indígena Juan Diego, no século XVI, relatou ter visto Maria, mas com o traço das mulheres do seu povo. A iconografia segue esta descrição para Nossa Senhora de Guadalupe. E no Brasil escravocrata, com pescadores livres, mas nem por isso tratados melhores que os cativos, foi a cor negra que Nossa Senhora da Conceição assumiu ao se tornar “das águas Aparecida” para socorrê-los.
Na década de 1990 e nos primeiros anos da década de 2000, acossada pelo crescimento assustador do neopentecostalismo que, inclusive, ousou ter um bispo evangélico chutando diante das câmeras de TV uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, a Igreja, mais uma vez usou a força da mariolatria, que é como se chama a devoção a Maria. Uma dessas invocações, Mãe Rainha de Schoenstatt, ganhou uma projeção impressionante por todo o Brasil. Há um sistema de devoção em que a cada noite o ícone é levado para uma casa, no dia seguinte vai para outra e assim sucessivamente. Ocorre mensalmente uma celebração nas igrejas para renovar o compromisso.
Mas a “Nossa Senhora dos católicos” ou a “ Maria” dos evangélicos, que a reconhecem como Mãe de Jesus, é apresentada como uma mulher que tem virtudes adequadas aos que os líderes das instituições cristãs e a teologia clássica consideram exemplo a ser seguido. No caso dos católicos a sua concepção virginal é dogma (certezas de fé que não podem ser contestadas). Ela é considerada virgem, antes, durante e depois do parto. Também segundo um dogma católico é a única humana que nasceu sem o pecado original. Este nada tem a ver com sexo, afinal o próprio Deus disse a Adão e Eva que deveriam se reproduzir para povoar o mundo.
O pecado original tem a ver com a desobediência de provar do fruto da árvore do conhecimento, o único que havia sido proibido. Ao comerem seus olhos se abriram, ou seja, quem conhece, em tese, o faz depois da dúvida, experimentação e bases para contestação. Assim, Maria nasceu sem essa mancha de desobediência à vontade divina, em uma “Imaculada Conceição”, dogma que é celebrado em 8 de dezembro sob a invocação de Nossa Senhora da Conceição. É mais uma forma de afastá-la completamente das “filhas de Eva”, esse modelo de feminino que nem sempre é reiterado. Quando o fazem é apenas para indicar que a sua união com Adão, em dualidade – macho e fêmea – é a certa desconsiderando as indicações de gênero nascidas de outras formas de conhecimento, muitas vezes, ancoradas em bases muito mais sólidas do que uma fé fragilizada pelo medo e culpa.
Fontes para conhecer mais: Bíblia Sagrada em edição pastoral (Paulus); O Evangelho segundo Jesus Cristo (José Saramago, Companhia das Letras, 1991); As brumas de Avalon (Marion Zimmer Bradley, Planeta Minotauro, 2018) Deus: uma biografia (Jack Miles, Companhia das Letras, 2009).