Não pode ser menina de pipi?
Eu não sei se esse bebê vai ser cis ou trans, mas sei que ele vai crescer numa família em que, seja ele menino ou menina, tenha ele pipi ou pepeca, ele terá liberdade de sobra pra descobrir quem é e não será menos amado por isso.
Dia desses uma amiga foi fazer o ultrassom da gravidez e levou o filho de sete anos a tiracolo. Ele queria porque queria uma irmãzinha e, por conta disso, estava bastante ansioso com o resultado do exame. E eis que a médica solta a bomba:
Parabéns, mamãe, você vai ter um menino!
A criança não se conformou com a declaração e perguntou por que que era um menino. A médica estranhou a pergunta e respondeu o óbvio, “oras, olha o pipi dele aqui no ultrassom”. “Mas não pode ser uma menina de pipi?”, ele retrucou, ainda insatisfeito. “Muito difícil”, a resposta da médica. Eis um diálogo sintomático das transformações pelas quais a sociedade vem passando, mas também dos obstáculos muitos que ainda temos pela frente.
Essa criança conviveu comigo nos últimos cinco anos, me viu antes de Amara, éramos colados, grandes amigos, e depois ele sofreu com a minha transição. No dia em que primeiro me viu Amara, toda maquiada, peruca e roupas femininas, foi uma festa… ele ficou fascinado com a possibilidade de mudar de nome e quis até mudar o dele também. Mas quando viu que era sério, a coisa mudou de figura. Tornou-se arredio, não queria mais brincar comigo, se afastou completamente.
Um dia ele me viu sem peruca na Unicamp e abriu um sorriso: “você voltou a ser o falecido?” A carinha de desamparo quando se deu conta que não. Pouco depois, a mãe me contou dum dia em que o pegou chorando desconsoladamente porque o “amigo” dele tinha morrido e ele sentia saudades do “amigo”, não da Amara. De nada adiantou a mãe dizer que eu era ainda a mesma pessoa e tão legal quanto antes.
É sofrido perceber o quanto as pessoas sofrem com a nossa transição. Vivemos uma vida de máscaras, imposições, aí quando encontramos forças pra lutar contra isso e ir atrás de descobrir quem somos, a gente acaba machucando quem a gente ama, quem a gente gosta. E isso mesmo essas pessoas vendo que estamos felizes, que finalmente estamos podendo ser nós.
Hoje a minha relação com ele já é bem mais tranquila, a gente conversa, brinca, vê TV. Agora eu sou Amara pra ele também, e nunca mais ele me perguntou do falecido. Não tem a mesma cumplicidade que já tivemos antes, mas isso talvez seja mais porque agora eu tou cada dia num canto, viajando sempre, encontrando com ele só muito de vez em quando.
Conseguem perceber a importância desse relato do ultrassom? As gerações que estão vindo, que estão tendo contato desde cedo conosco, já partem do princípio de que gente como a gente existe e com todo o direito… e quão mais leve não é poder existir num mundo que acredita que podemos existir, num mundo que sabe que fazemos sentido!
A médica ainda não está preparada para lidar com essa novidade, mesmo com seus anos todos de medicina. Talvez nunca tenha visto uma pessoa trans de perto, talvez nunca tenha convivido com uma. Possível que nem saiba que não somos doentes. O seu “muito difícil”, na verdade, significava “impossível”, mas aquela criança ali, nananinanão, ela já sabe que isso não é verdade, ela já viu com seus próprios olhos que é possível sim.
Eu não sei se esse bebê vai ser cis ou trans, mas sei que ele vai crescer numa família em que, seja ele menino ou menina, tenha ele pipi ou pepeca, ele terá liberdade de sobra pra descobrir quem é e não será menos amado por isso. Um primeiro passo, um passo decisivo, para que um dia o mundo possa também ser chamado de nosso.