Moda democrática e o novo mundo
Existem muitos e geniais criadores autorais brasileiros que são pensadores da moda do nosso tempo, e não apenas executores.
Democracia é um tema urgente. E a pergunta da vez é: como transformar democracia em roupa/moda?
Não desejamos nem pensamos as mesmas coisas, não agimos do mesmo modo, não temos o mesmo gosto, nem a mesma estética, mas somos iguais.
Igualdade é um princípio da democracia. Ser igual para um criador de moda, deve significar ter o mesmo acesso a informações, mesmas condições de trabalho, mesmo poder de escolhas de produção, e mesmas oportunidades de divulgação. Ser igual para um consumidor, dever ser ter acesso a informações de onde, por quem, e em quais condições foi produzida a peça do seu interesse, e ainda ter oportunidade de compra a preço justo, ter opções de escolha de design, ter as proporções do seu corpo atendidas, e sua cultura respeitada.
Porque “a função principal da roupa não é vestir” [como bem disse Millôr], precisamos nos reinventar completamente. Estamos em plena revolução no mundo da moda, e a hora é de utilizar novas linguagens pra existir, e adotar a inteligência funcional pra se colocar, cada um com seu próprio ajuste, seja como produtor ou consumidor. O novo mundo da moda é sobre isso, e precisamos praticar essas ideias. Não tem como não dar certo.
Existem muitos e geniais criadores autorais brasileiros que são pensadores da moda do nosso tempo, e não apenas executores.
Seguem alguns que merecem ser conhecidos:
Um criador pensa por imagens, que se tornam sentimentos, que despertam boas ideias. As imagens curvas do trabalho da designer Solange Arruda certamente fazem referência à Brasília, sua terra natal, e as infinitas combinações de tons aplicados em suas criações são totalmente Alagoas, onde vive. Sua marca conta com uma equipe de produção de 10 mulheres artesãs que moram no entorno de Maceió, e realizam a junção de retalhos muito criteriosamente escolhidos e linhas de algodão multicoloridas, que são trabalhadas com crochê e outras técnicas manuais, tendo como base diferentes materiais como mangueiras e fios elétricos, num processo sustentável.
Originalidade é sua palavra-chave. Ela não tem medo de experimentar o novo, e sabe que o prazer começa no olhar.
Quatro mãos compõem a Coletivo de dois. Da junção do design gráfico do Daniel, com a criação de moda do Hugo, nasceu uma proposta estética verdadeiramente autoral, leve, colorida, unissex, atemporal, trabalhada com conceitos sustentáveis, como a peça-ícone da marca, o moletom Arco Íris, consagrado como uma peça de resistência da comunidade LGBT+.
Desde 2014 seguem com suas construções contínuas de desenhos geométricos altamente elaborados, sempre com reutilização de tecidos, que já somam cerca de duas mil peças e “600 kg de tecidos que não foram descartados nos lixões”. Esse coletivo sabe que conhecer o que se faz e dar pós-vida a retalhos é luxo.
A marca NUZ tem um movimento interior próprio. Se define como “peças atemporais que propiciam coautoria no design interativo”. Sim, é perceptível. Com suas invenções têxteis feitas através de garimpos de tecidos, deixa claro que o fim do ciclo é sempre um recomeço, e que é possível utilizar uma mesma peça de diferentes maneiras em muitas situações.
Sua designer, Duda Cambeses, brinca com conceitos estéticos do vestir, e, desenvolvendo a ideia de unir tradição com inovação, propõe novos limites do corpo, através de recursos estilísticos. Prova que é realmente interessante a possibilidade de um armário com repertório visual transformável, com roupas que podem compor looks diferentes com as mesmas bases. Experimentar o experimental é otimizar o tempo. E a vida.
A primeira coleção Dendezeiro acaba de ser lançada. Foi criada baseada e inspirada na pesquisa da fotógrafa brasileira Angélica Dass, “Humanae Project”, que registrou diferentes tonalidades de peles em mais de 30 países. Decidida a desafiar estigmas, a marca desenvolveu suas peças utilizando cinco das tonalidades de peles registradas pela fotógrafa, que dialogam com a diversidade de cor de pele de pessoas negras no Brasil. É um exemplo perfeito que reeducação social com fundamento estético funciona. Lindamente bem.
A H-AL atende o querer a seu modo. Os designers Alexandre Linhares e Thifany F. produzem moda como arte têxtil, explorando fortemente o mundo ao seu redor, com a aplicação de conceitos inovadores como o ecodesign, e muitas vezes confeccionam seus próprios panos, com resíduos e retalhos da indústria têxtil e de ateliês de outros criadores próximos.
Como eles mesmos afirmam, trabalham “valores e processos, cada vez mais inegociáveis no sistema da moda, tais como, upcycling, redesign, zero waste, localvore e economia circular”. Assim, criam uma estética renovada com o uso aleatório de tecidos misturados sem lógica aparente. Apresentam seus trabalhos de formas não convencionais, com coleções sem tema e modelos fora do padrão. Já vestiram a deusa Elza Soares em diferentes turnês.
França, Itália, China, Inglaterra, Islândia. Grécia, Espanha, Japão, USA, Caribe também. Todos já sabem: a marca Helen Rodel leva um universo dentro de si. É fato: ela é uma entre os designers mais inspiradores do Brasil. Faz do crochê sua ferramenta de criação, mas sua “mão na massa” transcende tudo o que se vê comumente por aí. Com linhas e agulhas cria uma livre interação, ponto a ponto, entre rebeldia e ética estética. Seu olhar futurista – retrô, explora o refinamento das tradições manuais, ao invés de tentar só imaginar algo novo. Suas criações são desenvolvidas com tanta propriedade, com tanta clareza de design, que vejo o seu trabalho como possuidor de qualidade poética.
No Paraíso da Isabela Capeto cabe um mundo todo de ideias. Influenciada pela vibe da sua cidade, Rio de Janeiro, repassa ao mundo através do seu trabalho o brilho do sol, as cores do Brasil e a leveza do feito à mão, com simplicidade elaboradíssima.
Isabela comunica o seu instinto criativo de maneira inteligente, com ousadia, produzindo pequenas coleções muitas vezes de peças únicas e exclusivas, com toques artesanais, e muito de bordado. Trabalha conceitos de sustentabilidade como bem poucos. Desenvolveu há muito tempo a estratégia de reposição semanal de novas peças que se complementam.
Seu processo produtivo é livremente funcional, e uma das imagens criadas por ela que mais me marcaram, foi dessa forração com caixas de papelão, usadas na passarela de um de seus desfiles na SPFW há alguns anos. Ela se importa com o que interessa e propõe novas concepções.
Moda é onde nosso íntimo está exposto, e as criações de Vitor Cunha são sobre isso: peculiaridades e harmonia. Ele é um novíssimo nome de 20 anos, que acabou de lançar [no Dragão Fashion Brasil, em Fortaleza], sua primeira coleção “Mar adentro”, para a qual construiu looks simples e de vanguarda, usando óculos em MDF, bolsas com a transparência das águas, maxi-acessórios em palha de carnaúba, sandálias com amarração – todos produzidos com materiais naturais, com aplicações de 17 kg de fios trabalhados em macramês, tingidos artesanalmente, pontuando sabiamente o universo do mar e suas múltiplas simbologias. Amei as viseiras com franjados, que reverenciam o sincretismo do Adê, [espécie de adorno típico do Candomblé], que também permeia a cultura da pesca no Ceará.
Em Minas Gerais, a marca Libertees produz moda libertária, literalmente. Suas criações são desenvolvidas dentro do Complexo penitenciário feminino Estevão Pinto, em Belo Horizonte, onde há cerca de dois anos, um grupo de mulheres realiza todas as costuras das suas peças. Mas não só isso: as mulheres privadas de liberdade são as responsáveis pelos desenhos livres, que se tornam as estampas impressas da marca. Com o slogan “Mude o mundo”, Marcella Mafra e Daniela Queiroga compartilham os seus saberes de como traduzir olhares em estratégias criativas, e provam que moda é veículo do bem.
A essência da marca Luiza Pannunzio é a memória afetiva. Multifacetada, ela partiu dos registros em fotografia pros desenhos, que desenvolve agora pra dar vida a personagens e vestir pessoas. Com formação em artes plásticas, além de ilustradora, escritora, figurinista, ativista, Luiza é feminista e dada a conversas seguidas de atitude. Sua principal loja-ateliê, que fica há muitos anos na Galeria Ouro Fino em São Paulo, resistiu a todas as infinitas mudanças desse local icônico, e segue, forte, muito provavelmente pela adoração que as pessoas que entendem processos sentem pelo feitio de roupas “como se fazia antigamente”, com o olhar personalizado, mas não estático. Em suas peças, usa uma tag com nova definição de tamanhos que é bacanérrima.