Insegurança amazônica
Na noite do dia 21/4, a sede do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), em Belém (PA), foi invadida e dois dos seus dirigentes, que cumpriam agendas na capital e dormiam ali, foram espancados e assaltados
Na noite do dia 21/4, a sede do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), em Belém (PA), foi invadida e dois dos seus dirigentes, que cumpriam agendas na capital e dormiam ali, foram espancados e assaltados. Os criminosos, provavelmente, agiam a soldo de grileiros de terras, ameaçaram retornar e executar quem estivesse por lá.
Na semana anterior, no Vale do Javari (AM), no outro extremo da Amazônia, uma quadrilha armada invadiu uma aldeia Kanamari, ameaçando um massacre, se os indígenas resistirem à extração ilegal de madeiras e a pesca predatória em seu território, atividades com que o narcotráfico lava dinheiro. Os invasores falavam espanhol. O crime ocorreu na mesma região em que Bruno Pereira e Dom Phillips foram assassinados, no ano passado.
Houve, no final de março, pelo menos duas ocorrências de resistência armada a ações do Ibama e da Polícia Federal para retirar garimpeiros da Terra Indígena Yanomami (RR-AM), na fronteira com a Venezuela. Também há presença do crime organizado na extração predatória de ouro e cassiterita na região.
Violência em alta
Alianças e sobreposições do crime organizado com crimes ambientais estão no centro dos estudos de Aiala Colares, professor da Universidade Estadual do Pará, que coordenou uma pesquisa sobre o tema, em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O trabalho destaca a interiorização das facções criminosas no Norte do país e a sua chegada a territórios de comunidades tradicionais. O último anuário do Fórum, de 2021, reportou uma queda de 6% nas mortes violentas no Brasil, enquanto na região houve um aumento de 9%.
A atuação do crime organizado na Amazônia não se resume à região da floresta e as suas conexões vão muito além e afetam todas as áreas. Fiéis de uma igreja evangélica de Santana (AP viveram momentos de pavor na noite do dia 23, quando membros de uma facção promoverem ataque a rival dentro do templo, deixando três mortos e cinco feridos, inclusive uma criança de três anos, que levou dois tiros e está em estado grave.
Um dia antes, em Manaus (AM), um policial e outros dois homens foram executados no meio de uma festa, no bairro do Tarumã. A Polícia Militar informou que criminosos invadiram o evento e fuzilaram duas vítimas. O policial que trabalhava como segurança da festa reagiu e foi baleado no rosto.
O Instituto Igarapé publicou uma análise de mais de 300 operações da Polícia Federal, realizadas entre 2016 e 2021, que mostra vínculos de organizações criminosas da Amazônia em 24 estados. Grupos ligados a crimes ambientais – como extração ilegal de madeira, garimpo, desmatamento e grilagem de terras – também atuam em outras frentes criminosas: fraudes, lavagem de dinheiro, tráfico de drogas e pessoas, crimes contra o sistema financeiro e sonegação fiscal.
Em todo o Brasil, o estudo identificou a presença dessas quadrilhas em 254 municípios, com destaque para estados de fora da Amazônia Legal, como São Paulo, Paraná e Goiás. A atuação criminosa não se limita ao território brasileiro: na América do Sul, as operações da PF tiveram desdobramentos na Guiana Francesa, Venezuela, Suriname, Colômbia, Paraguai e Bolívia.
Uma poderosa frente de grilagem de terras e de desmatamento ilegal avança ao longo da Transamazônica, no sul do Amazonas, estado que vem liderando os alertas de desmatamento emitidos pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), superando Mato Grosso e Pará. O Ibama embargou rebanhos bovinos deslocados para as terras griladas, o que provocou um virtual levante dos prefeitos da região, com apoio de congressistas para pressionar o governo federal, em favor de interesses criminosos.
O conluio entre frentes predatórias e bancadas parlamentares regionais contrasta com a posição assumida por autoridades federais. Luís Roberto Barroso, ministro do STF, disse que “o Brasil corre o risco de perder a sua soberania sobre a Amazônia para o crime organizado”. Na mesma rota, o presidente do Senado declarou que o “estado paralelo na Amazônia é motivo de alerta e reação”. Mas, em vez de investigá-lo, o Senado instalou uma CPI para criminalizar a atuação das ONGs.
Defesa ineficiente
A postura dos órgãos de segurança diante da criminalidade generalizada na Amazônia é de leniência e dissimulação. O corporativismo prevalece sobre a cooperação. O Exército afirma que a competência para combater ilícitos é das polícias e que as Forças Armadas atuam na defesa das fronteiras e da soberania nacional, com foco nas “ameaças externas”. Porém, não havendo ameaça de guerra com os países vizinhos e sendo transnacional o crime organizado, esse conceito fica defasado.
Além disso, essa não é a divisão de competências estabelecida pela legislação. O artigo 17-A da Lei Complementar 97/1999 diz que “cabe ao Exército Brasileiro, além de outras ações pertinentes, IV – atuar, por meio de ações preventivas e repressivas, na faixa de fronteira terrestre, contra delitos transfronteiriços e ambientais, isoladamente ou em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo”. Significa que, na faixa de 150 km ao longo de todo arco fronteiriço amazônico, o papel do Exército prepondera, também, no combate a ilícitos.
As estruturas da Polícia Federal e das polícias estaduais são insuficientes para dar cabo da demanda. Desde que o sistema penitenciário amazônico se internacionalizou, com a transferência de chefões do narcotráfico do Sudeste para lá, a barra pesou de vez. De um lado, as polícias sofrem com a cooptação pelo crime organizado; por outro, pelo aumento de agentes mortos em seu combate e a precariedade das condições de trabalho, incluindo a indigência de salários e treinamento.
O estado brasileiro fez grandes investimentos na estrutura de defesa da Amazônia, desde o Projeto Calha Norte ao Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam), que não dão o retorno esperado. Batalhões de fronteira podem ter efeito dissuasório, ou assistir comunidades locais, mas, dispersos, não têm como enfrentar o crime organizado. E não sabemos a quantas andam os olhos do Sivam, diante da profusão de aeronaves e pistas de pouso clandestinas.
A extensão da Amazônia e do arco fronteiriço é, sim, um grande desafio logístico e operacional para a segurança pública, como para as demais políticas públicas. Mas a questão central é outra: a falta de comando estratégico e de articulação de esforços, com baixo investimento em inteligência, tanto policial quanto militar. Por essa pegada estratégica é que se poderia realocar e reorientar a atuação das grandes estruturas de segurança de que dispomos.
Viver na Amazônia – morar, transitar, trabalhar, conviver – é, sempre, viver perigosamente. Enquanto não houver uma revisão das políticas de defesa para a região que encare os seus reais desafios, presentes e futuros, ela será cada vez mais perigosa.