Indignações juninas
Quem acompanhou os embates de junho já sabe: só a reação da sociedade, em escala, pode paralisar, ou reverter, o avanço de pautas predatórias.
O mês de junho se vai, mas deixa no ar um aroma de esperança que, quem sabe, também já se esvai.
Em geral, nas democracias, o Congresso, supostamente plural, constitui uma espécie de freio institucional a eventuais mudanças políticas abruptas decorrentes das eleições presidenciais. O Senado, em especial, com mandatos alternados de oito anos, prolonga situações políticas passadas sobre o futuro imediato. O Legislativo, em princípio, é um poder conservador.
Mas a extrema direita que ora viceja no parlamento de Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (PSD-MG) é devastadora, e não conservadora, ao ameaçar a base de direitos instituída pelo próprio Congresso. Um exemplo eloquente é o “Pacote da Destruição”, que reúne as iniciativas legislativas erosivas dos direitos socioambientais.
Essa direita erosiva chegou babando a 2024, embalada pela aprovação da Lei 4701, que impõe o “marco temporal” de 5/10/88 às demarcações indígenas, que, ao contrário, baseiam-se em direitos definidos como originários pela Constituição, ou seja anteriores ao próprio Estado.
A Articulação dos Povos Indígenas no Brasil, APIB, questiona no STF a constitucionalidade dessa lei. Muita gente tomou conhecimento das ameaças em curso através do debate público sobre o tal “marco temporal”, mas a indignação suscitada não foi suficiente para impedir a sua aprovação.
Transbordante
Este outono seria decisivo para a direita erosiva, já que as festas juninas antecipam o recesso branco do Legislativo, que, em ano eleitoral, estende-se até outubro. Ela estava segura em manter sob suas rédeas a direita conservadora, pelo suposto apelo eleitoral de que dispõe a agenda erosiva, mas topou com praias e enchentes nos seus descaminhos.
Não há como precisar exatamente o clique que deu na cabeça da galera. O fato é que o outono abriu espaço a sucessivas reações da opinião pública ao desmonte civilizatório. Vou apostar que foi a enchente no Rio Grande do Sul que transbordou a paciência das pessoas. Afinal, a leniência dos governantes, mesmo diante de recorrentes catástrofes, até para manter um sistema de proteção já existente, ficou evidente demais.
No caso, o coração do povo brasileiro transbordou de solidariedade, dos heróicos resgates às campanhas de doações. O clamor suscitado aguçou a percepção de muita gente sobre o besteirol promovido pelos governantes locais. Não houve reação similar nas catástrofes climáticas anteriores.
As sequelas no Rio Grande do Sul são extensas, as enchentes vão e voltam, não houve sossego. Vamos ver quão resiliente será a indignação e que efeitos ela produzirá nas próximas eleições. Mas o El Niño se converte em La Ñina, que também promete ser severa, com a possível ocorrência de mais uma seca histórica na Amazônia, no próximo semestre.
Com ambição transbordante, as bancadas predatórias quiseram emplacar uma emenda à Constituição, para fragilizar o instituto dos terrenos de marinha, faixa costeira pública, que tem restrições para comercialização. A pretexto de “regularizar” algumas situações de fato, estaria aberta a porta para o estouro da boiada. Choveram charges com bilheterias em praias interditadas. A ousadia gerou indignação, que fez Pacheco puxar o freio de mão sobre a proposta no Senado.
Atordoante
Lira ainda tentou protagonizar mais uma barbárie, em parceria com Sóstenes Cavalcanti (PL-RJ), evangélico bélico, autor de um projeto de lei para punir mulheres e meninas que pratiquem aborto após 22 semanas de gestação, mesmo sendo a gravidez resultado de estupro e a vítima sendo criança, ficando sujeita a penas mais graves que o próprio estuprador. Sóstenes quis destruir outra lei, conservadora, de 1940.
Lira dispôs-se a aprovar o regime de urgência para votar em plenário a aberração. Diante de tantas outras urgências preteridas, o escândalo foi geral, menos para Sóstenes e mais para o próprio Lira, que saiu dizendo, na cara dura, que não tem compromisso com o mérito da proposta. O deputado também puxou o freio de mão na tramitação do projeto e chutou o bode para depois das eleições. Sóstenes ficou chiando.
Eis a questão: que tipo de final de ano Lira e Pacheco desejam para a nação? No seu ponto de vista, jogar para a frente significa tentar esvaziar a pressão. Não será fácil manter até outubro o mesmo grau de indignação. Eles apostam na naturalização da aberração.
No final do ano, Lira e Pacheco encerram os seus mandatos nas presidências da Câmara e do Senado e não poderão ser reeleitos. Manobram para eleger sucessores que lhes preservem poderes e espaços na travessia até as eleições de 2026. O retorno das pautas atordoantes é mais do que possível.
Day after
O outro lado da questão é sobre como estarão os ânimos da população no pós-eleição. Estaremos mansinhos, nos preparando para as festas de Natal, ano novo e posse dos eleitos? Ou estaremos torrados pela La Niña, morrendo de sede e de ódio? Seja lá como for, temos encontro marcado com o Demo.
É difícil imaginar Arthur Lira saindo de fininho: ele deve aprontar. Porém, não há outro que encarne o mesmo grau de malignidade. Sua sucessão é difícil, ele pode até ganhar perdendo, e vai priorizar os próprios interesses. E aí veremos, em cada agenda, quem pode, ou não, safar-se das ofertas de verão.
Quem acompanhou os embates de junho já sabe: só a reação da sociedade, em escala, pode paralisar, ou reverter, o avanço de pautas predatórias.