Haverá futuro?
A seca não terminou, a fumaça continua no ar e as polícias ainda investigam centenas de incêndios criminosos
Brasília vivia até esta semana a maior estiagem da sua história. O Cerrado, adaptado ao clima seco, insiste em sobreviver. As espécies nativas brotam, as cigarras cantam, contando com a chuva que voltou ainda tímida, após mais de cinco meses de ausência. A água míngua nas nascentes, lagos e rios. O fogo consome a vegetação nativa, pastagens e plantações, cercando casas, animais e pessoas. Os olhos e os pulmões são obrigados a suportar a fumaça que empalidece o céu.
Há uns 60 km do centro da capital federal, uma caminhonete avança por uma rodovia e para na bifurcação com uma estrada de terra. Um homem desce pela porta do passageiro, caminha calmamente até uma moita seca, tira um isqueiro do bolso, ateia fogo e deixa que o vento o leve para dentro da mata. Retorna, então, para o veículo, que retoma o caminho. O fogo queima uma área do tamanho de 570 campos de futebol e piora ainda mais a qualidade do ar, afetando quem vive ou passa por ali.
O incendiário e o seu motorista sabiam da seca, do fogo e da fumaça. Sabiam que a fumaça é tóxica e afeta a saúde de quem a respira, inclusive a deles mesmos. Só não sabiam que uma câmera de segurança havia registrado toda a operação. Com a multiplicação desses casos, a polícia suspeita de um novo estratagema para ocupar áreas públicas ou protegidas por meio de queimadas.
Falta de água
Apesar da expressiva queda nas taxas de desmatamento na Amazônia, o Brasil bate o seu próprio recorde em queimadas e em poluição atmosférica. Uma nuvem gigante de fumaça e fuligem alcançou quinze estados e obrigou milhares de pessoas a recorrerem aos serviços de saúde. Por vários dias, a qualidade do ar em São Paulo foi a pior do mundo.
As condições climáticas estão excepcionalmente ruins. O aquecimento das águas do Atlântico equatorial restringe a formação das nuvens de chuva que os ventos alísios empurram através da Amazônia, formando os “rios voadores” que irrigam o centro-sul do país. A redução do volume e da superfície de água é dramática em várias regiões, afetando o abastecimento de cidades e comunidades, a geração de energia e a navegação.
Diferentemente das florestas mais secas do hemisfério norte, sujeitas a incêndios naturais, causados por raios, nas florestas tropicais eles raramente têm essa consequência. A umidade impede a combustão, exceto em áreas degradadas. Porém, o efeito da forte estiagem, por dois anos seguidos, tornou inflamáveis vastas regiões da Amazônia, do Pantanal e de outros biomas. No Brasil, mais de 90% dos incêndios florestais são causados por ação humana, acidental ou criminosa.
‘Piroterrorismo’
A seca não terminou, a fumaça continua no ar e as polícias ainda investigam centenas de incêndios criminosos, como o de Brasília. Não há causa única, mas há evidências de orquestração em muitos casos. Um exemplo é o dos grileiros que atuam no eixo da rodovia BR-163, que vai de Cuiabá (MT) para Santarém (PA). Multados e embargados por desmatamento ilegal, assumiram, nas redes sociais, a autoria dos incêndios florestais que infernizam a região: “Que o governo venha salvar a sua floresta”. A polícia também vê o dedo do PCC, Primeiro Comando da Capital, no fogo que destruiu canaviais no interior de São Paulo.
É comum o uso criminoso do fogo, mas, como arma política, torna-se uma ameaça à democracia. Apesar dos eventos extremos recorrentes, que não deixam dúvidas que a crise climática já está aí, ainda há quem diga que não acredita no aquecimento global. Ao incinerar inimigos, esses também se queimam. Multiplicar focos de incêndio, em anos seguidos, acelera a tendência de transição da floresta para um ecossistema mais seco e pobre na Amazônia Oriental, enquanto a ruptura nos ciclos de chuvas pode inviabilizar a agricultura em várias regiões.
Os “piroterroristas” queimam os inimigos, os vizinhos, a si mesmos e as chances de enfrentarmos a emergência climática. Não cabe aliviar. As penas previstas em lei são ridículas e há resistência no Congresso para aumentá-las. O governo federal lançou um programa de apoio às prefeituras dos 70 municípios onde ocorre maior incidência de fogo, mas 22 recusam-se a participar. Se não se evitar, o risco é incentivar uma guerra do fogo: “quem com fogo queima, com fogo será queimado”.
‘Piropiração’
Além da loucura política, existem loucos avulsos de plantão. Alguns incendiários, quando detidos, alegam revolta contra o mundo para explicar as suas ações. Como não se sentem acolhidos, tocam fogo no mundo. Depois, seguem a vida como se nada houvesse. São psicopatas do fogo. Sentem-se vítimas, legítimas para queimar.
Em agosto de 2023, Apoorva Mandavilli publicou artigo na Folha de São Paulo, dizendo que “pesquisadores constataram que existe forte associação entre altas temperaturas e o aumento do número de suicídios. O calor forte tem sido vinculado a um aumento na criminalidade e agressão violenta, em hospitalizações por transtornos mentais e em mortes, especialmente entre pessoas com esquizofrenia, demência, psicose e abuso de substâncias. Cientistas estimam que para cada grau centígrado de elevação na temperatura, ocorre um aumento de quase 5% no risco de morte de pacientes com psicose, demência ou abuso de substâncias”.
Para além das patologias, a crise climática produz uma brutal sensação de impotência na maioria das pessoas. Põe em crise a expectativa de futuro da juventude. Estimula o imediatismo e o oportunismo, a busca de vantagens pessoais e a falta de empatia em relação aos demais. É como se, condenados à morte, não houvesse mais o que fazer ou só restasse se aproveitar da situação.
Depois do fogo
Olhem bem para um mato todo queimado, com plantas e animais torrados. Quem pode fugiu. Se chover, surgirão brotas. O mato não será o mesmo de antes, mas pode voltar. É a resiliência da vida. O fogo impõe o desespero, mas o renascer repõe a esperança.
A Terra seguirá girando mesmo depois da última árvore e do último predador. Mas é improvável que todas as árvores e todos os seres humanos se queimem. Assim como é provável que os últimos sobreviventes deixem de explorar as últimas gotas de petróleo, um dos principais responsáveis pela emergência climática. Chegará o momento em que o sofrimento extremo nos forçará a superar a ameaça do aniquilamento. Será uma benção para quem viver esse momento.
Diz a Bíblia que, depois do apocalipse, virá o reino de Deus na Terra. O piroterror não convive, mas a piroloucura poderá ter cura nesse reino. Antes do total desespero, procurem um sinal de esperança, pois deve haver.