Imagine acordar na madrugada e descobrir que o porteiro está ao seu lado se masturbando enquanto te assiste dormir? Agora imagine ficar tão sem reação que nem consegue gritar antes que o porteiro fuja. Imagine depois então ter a sua verdade questionada.

Gabriella Camelo não precisou imaginar nada disso pois, no dia 24 de dezembro de 2022, foi isso que aconteceu com ela no antigo prédio em que morava.

Foto: Giselly Barbosa

No silêncio da noite, quando todos deveriam estar seguros em suas casas, uma mulher teve sua intimidade violada. A história de Gabriella Camelo poderia ter um final bem diferente se não fosse a câmera de vigilância do prédio, que provou sua palavra e desvendou uma trama de possível gaslighting. 

Na véspera de Natal, Gabriella acordou com o porteiro se masturbando na frente da sua cama, e ficou sem reação. Embora estivesse com um homem ao seu lado, ela só conseguiu gritar quando o porteiro já tinha ido embora. Meses depois, no tribunal, ela foi questionada justamente por isso. Por não reagir. E se não fosse a câmera de segurança do corredor que mostrou o porteiro se estimulando e entrando na madrugada em seu apartamento, ela não teria conseguido buscar justiça.

Nos reunimos com Gabriella para entender mais sobre sua história.

Gabi, se você pudesse resumir em uma palavra: como você se sentiu durante todo o período enquanto tentava provar o que havia acontecido?

Eu me senti descredibilizada, três vezes. A primeira quando ele (o agressor) contou a sua versão. Como se tratava de um prédio novo e ele tinha acesso a todos os apartamentos (desde que com autorização prévia), afirmou que só foi trocar encomendas e que eu teria acusado ele de roubo. Eu me senti descredibilizada uma segunda vez, quando todos no prédio se voltaram contra mim, porque acreditaram na versão dele (isso foi antes das imagens da câmera serem liberadas). E a terceira vez foi quando o síndico não fez nada mesmo após ter a prova da câmera.

Se não foi na figura do síndico que encontrou auxílio, onde achou a sua rede de apoio?

Minha mãe e minha família ficaram do meu lado. Lembro que minha mãe chegou até a perguntar para o síndico: “o que você faria se tivesse uma filha mulher que passasse por isso?”. E ele respondeu: “eu não tenho filha mulher, eu só tenho filho homem”.

Além disso, a imagem que eu tinha do porteiro até então entrou em conflito várias vezes, porque ele sempre se mostrou alguém prestativo e gentil. Daí eu me vi tentando minimizar a situação, até que um amigo me deu um choque de realidade e disse que seria importante eu ir à delegacia.

Também tive que buscar apoio — justamente onde eu não queria — nas minhas redes sociais. Acho que tornar público tudo isso me fez enxergar o tamanho da situação. Na hora que eu estava em conflito, não tinha me dado conta que aquilo era um crime. Tornar público legitimou também a minha experiência e me fez entender o que realmente havia acontecido ali comigo.

Houve algum momento que você pensou em voltar atrás?

Por um tempo não consegui voltar para casa e fiquei na casa de uma amiga. A primeira vez que pensei em desistir foi quando não fui atendida na delegacia da mulher. Aí acabei indo para uma delegacia comum.

O segundo momento que quase desisti foi quando tive acesso ao depoimento dele e entrei em estado de choque, pensei que podia estar acabando com a vida dele, pensei que eu podia ter imaginado. A dúvida em mim foi tão forte que cheguei a ligar para o meu advogado pedindo para retirar queixa. Foi quando meu advogado pediu para eu olhar de novo as imagens da câmera de segurança.

Eu mesma me descredibilizei aí, me coloquei na posição de louca, duvidei de mim. As câmeras foram importantes até para eu validar o que tinha vivido.

Passou mais de um ano desde esse incidente, que marcas você carrega desse episódio?

Fiquei um ano sem conseguir dormir na minha cama e todo barulho que eu escutava no corredor me deixava em estado de alerta. Tinha que checar todos os cômodos e até debaixo da cama. Fiquei com mania de perseguição na rua, acordei gritando de noite várias vezes.

Tive depressão, ansiedade, todos os sintomas do Transtorno Pós-Traumático e hoje, um ano e meio depois, ainda tomo medicamento e trabalho esse assunto na terapia.

Que conselho você daria para mulheres que estão passando por algo parecido?

Com esse assédio, eu precisei olhar para trás e validar toda situação de assédio que me via negando desde criança. Aprendi que isso é um mecanismo de defesa, mas também uma cicatriz que muitas mulheres acabam carregando numa tentativa de viver em paz. Hoje, após trabalhar muito isso na terapia, eu consigo entender que me senti violada e entendo também que não resolvi falar pensando em mim. A cada nova entrevista que eu dava, sabia que o medo e os sintomas continuariam aqui, mas penso que foi importante falar pelas próximas que virão. Para elas se defenderem também.