De que frio as pessoas morrem?
Afinal, de qual frio morre uma pessoa em situação de rua? Do frio das temperaturas ou da frieza da cidade?
Todos os anos no período do inverno as pessoas em situação de rua sofrem muito com as baixas temperaturas, que chegam a levar seres humanos a morrerem nas calçadas.
Na última semana um homem em situação de rua, que já estava com pneumonia, foi dormir ao lado de uma revistaria, e durante a madrugada faleceu, sem ninguém perceber.
É necessário muita frieza para uma pessoa morrer de frio na rua e ninguém ver.
Afinal, de qual frio morre uma pessoa em situação de rua? Do frio das temperaturas ou da frieza da cidade?
Só quem já entrou num albergue sabe a frieza que é o tratamento que as pessoas em situação de rua lá dentro recebem. Como um depósito de pessoas, todos dormem num lugar sem privacidade, insalubre e sem dignidade. Numeradas com “A1, B1, C1, A2, B2, C2…”, as pessoas ali parecem estar num campo de concentração. Todos os dias ouço reclamações, como é possível ver na página do SP Invisível sobre os roubos nos albergues, ou a extrema burocracia com que são tratados naquele ambiente.
Nos últimos dias a frieza do Estado pesou em cima da Cracolândia com muita repressão e violência na vida das pessoas que ali estavam.
Não é de hoje que a Polícia Militar e a Guarda Civil Metropolitana entram naquela região para expulsar os usuários e liberar o espaço para as construtoras e para a prefeitura ganharem dinheiro com uma “Cidade Linda”.
Mesmo sem a presença da polícia ali, aquelas pessoas são esquecidas e invisibilizadas até morrerem, como se o crack fosse um verdadeiro genocídio lento, que mata uma maioria negra e que simplesmente não é “útil” aos olhares frios do Estado ou das Empresas.
Basta sair um dia nas ruas e conversar com as pessoas em situação de rua para ver a frieza da GCM ao lidar com eles. Documentos, cobertores, carteiras, roupas, tudo se vai na fria abordagem dos guardas, como foi feito com Samir e é feito com vários outros diariamente. Hoje, essas abordagens ainda tem o aval da lei, que permite que a Guarda Civil Metropolitana possa fazer isso legalmente.
São Paulo é uma cidade fria: ninguém se olha, ninguém se fala, todo mundo anda com pressa e os corações já se endureceram nessa frieza. Sempre que vimos alguém em situação de rua, queremos desviar, fechar o vidro ou falamos que não temos nada, só para a pessoa ir embora logo, antes mesmo que ela fale algo.
Essa frieza da cidade gera frieza nas pessoas.
Por trás disso, há a necessidade de empatia, atenção e amor. Não de repressão, jugo e violência.
Antes do frio da temperatura é o frio do Estado, das pessoas, da lei, da burocracia, da violência policial e de toda São Paulo que tenta matar as pessoas em situação de rua.