Relatório da Pastoral Carcerária escancara a urgência na revisão das estruturas físicas e jurídicas no sistema penitenciário brasileiro, que se agravou durante a pandemia da Covid-19 com as condições sanitárias precárias na qual vive a população carcerária

Por Mauro Utida para Mídia NINJA

No início da pandemia do novo coronavírus, a Pastoral Carcerária Nacional divulgou uma carta aberta se posicionando sobre a possível consequência desastrosa caso o vírus se espalhasse pelas prisões brasileiras. Na época, no dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) havia classificado a contaminação pelo vírus como pandemia e o Brasil somava 78 casos confirmados e 930 casos suspeitos da doença, ainda sem mortes, que ocorreria pela primeira vez no dia 17 de março.

Nesta sexta-feira (22), cerca de 10 meses depois e 214.147 mortes no país pela Covid-19 – sendo 128 no sistema prisional -, aquele alerta divulgado em carta aberta pela Pastoral Carcerária se concretizou. Para mostrar a violência no sistema carcerário brasileiro, ampliado pela suspensão das visitas de familiares e de órgãos de monitoramento e fiscalização, a Pastoral lança o relatório “A Pandemia da Tortura no Cárcere”. O relatório é fundamental para entender como as pessoas privadas de liberdade e seus familiares acometeram pelos mais diversos tipos de torturas físicas e psicológicas durante este período, além de analisar a ineficiência do sistema jurídico em aplicar medidas para minimizar os efeitos nocivos da Covid-19 dentro dos presídios brasileiros, bem como seu impacto nas diversas populações presas, como as mulheres, a população LGBTI+, os indígenas e os presos do sistema socioeducativo.

O coronavírus não só se espalhou pelos presídios brasileiros pela negligência da necropolítica negacionista do governo federal, como se concretizou como um verdadeiro massacre. Segundo os frágeis, duvidosos e subnotificados dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), até 10 de novembro de 2020, o vírus e o Estado mataram cerca 121 pessoas presas no Brasil e 2.021 no mundo. Os dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), até 3 de novembro de 2020, apontavam para o genocídio de 205 vidas presas no Brasil. A fraqueza das estatísticas pode ser comprovada pelo número de testes feitos ao longo da pandemia e pela ausência de repasse de informações por parte das secretarias estaduais que administram o sistema prisional.

Os dados oficiais do Depen relativos aos meses de janeiro a julho de 2020 também apontam que 1.093 pessoas indígenas estavam presas no Brasil, porém a Pastoral Carcerária informa que há uma dificuldade em identificar quem ou quantas são as pessoas indígenas presas no Brasil. É imprescindível levar em consideração também que a criminalização dos povos indígenas está associada a sua luta pela terra, ausência de políticas públicas, conflitos e grande vulnerabilidade social. Os três estados que apontaram as maiores taxas de encarceramento dos povos indígenas foram Mato Grosso do Sul, Roraima e o Rio Grande do Sul. Ao todo, 45 povos distintos encontram-se privados de liberdade, em estabelecimentos penais no país.

“A invisibilidade dos povos originários em privação de liberdade diante do contexto da pandemia do Covid-19 acaba por se agravar já que pouco se sabe sobre a realidade das contaminações da doença no sistema carcerário de todo o país e ao mesmo tempo, evidencia a complexidade de mapear pessoas indígenas presas afetadas pela pandemia”.

Já no sistema socioeducativo, de acordo com a última atualização de 16/12/2020 do Boletim do Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2020), houve um total de 5.192 casos de Covid-19, sendo 4.059 envolvendo servidores e 1.133 adolescentes com 24 óbitos, todos de servidores. No ano que se comemorou os 30 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente/ECA (Lei 8069/1990), a pandemia de Covid-19 serviu de contexto para algumas ações de descaracterização da proteção integral exigida pelo ECA. Se avolumaram ações conservadoras, como a aprovação do porte de arma de fogo de agente socioeducativo pela Câmara Legislativa do Distrito Federal em outubro e a passagem da política socioeducativa no Rio de Janeiro da pasta da educação para segurança pública, aprovada pelo parlamento fluminense, além da discussão em torno da redução da maioridade penal pelo Senado Federal, proposta pelo filho do presidente.

“A Pastoral Carcerária tenta lançar luz sobre a escuridão torturante que permeou o cárcere brasileiro nos últimos meses, em contexto pandêmico. Um massacre violento e perverso assolou centenas de vidas. Desse modo, o Relatório busca colecionar reflexões sobre a pandemia de tortura que habita a prisão. Mais do que necessário fixar nas páginas da história as dinâmicas de violência institucional que o Estado Penal perpetua, perpetuou e perpetuará, enquanto não for abolido”, escreveu o padre Gianfranco Graziola, assessor teólogo da PCN.

Aumento da tortura

Não é de hoje que a Pastoral Carcerária vem denunciando essa realidade no sistema penitenciário brasileiro, entretanto a pandemia da Covid-19 aprofundou situações que vivemos literalmente há séculos e escancarou a crise sanitária estrutural nas prisões exaustivamente denunciada há décadas. O Brasil ostenta o nada honroso 3º lugar no ranking do maior número de presos do mundo, sendo que os negros e pobres são desproporcionalmente a maioria das pessoas privadas de liberdade. “São mais de 800 mil homens e mulheres vivendo em situação degradante dentro de um sistema cruel, injusto, retrógrado e conservador. Estamos atrás somente dos EUA e da China, mas os indicadores apontam que nos próximos anos ultrapassarmos esses dois países caso não se tomem medidas robustas e eficazes para estancar as comportas do sistema prisional que só cresce a cada dia”, informa o padre Almir José de Ramos, vice-coordenador da PCN.

Ainda que o tempo de pandemia ensejou o isolamento e o distanciamento social, é de conhecimento geral que as medidas sanitárias são impraticáveis nos cárceres brasileiros. Em ambientes totalmente insalubres, sem ventilação, onde ficam abrigadas múltiplas pessoas em espaço ínfimo, com o racionamento de água e de comida, é impossível conceber a aplicação correta das medidas orientadas pela Organização Mundial da Saúde.

Foto via Pastoral Carcerária

O recém egresso Luan Cândido, que é membro da Frente Estadual pelo Desencarceramento em MG, passou três anos encarcerado no presídio Antônio Dutra Ladeira, em Minas Gerais, e conseguiu a liberdade em julho do ano passado, pelo regime semiaberto. Nos últimos meses preso, ele enfrentou um dos momentos mais críticos da pandemia e escreveu sua experiência no relatório da PCN. Hoje, aos 40 anos, ele trabalha como editor de vídeo independente e estudante de jornalismo. Para exemplificar como os presídios não distribuem quantidade necessária de kits de higiene para suprir a demanda pessoal, ele desafia a passar três meses com um pedaço de sabão em barra e um creme dental para lavar roupa, tomar banho e escovar os dentes seis vezes ao dia. E, lembra: água só de manhã e de noite. “Na cadeia, tudo falta: água, espaço físico, paz, silêncio, comida de qualidade, produtos de higiene, afeto, liberdade, trabalho, atendimento, remédio… Nos sentimos indigentes e humilhados, é desumano e contraditório ficar anos em situação de vulnerabilidade dentro de uma instituição do estado”. E completa: “O sistema prisional é a instituição mais racista e misógina no Brasil, pois tortura diariamente homens e mulheres”, relata.

Em junho de 2020, mais de 200 organizações da sociedade civil e alguns órgãos públicos denunciaram internacionalmente o Estado brasileiro por violações de direitos humanos no cárcere durante a pandemia. Falta de transparência nas informações, falta de equipamentos de proteção individuais, tortura, agravamento da condição sanitária pelo precário acesso à água e à saúde, aprovação de leis de caráter violador são os principais elementos de uma realidade que já existia antes da pandemia.

Neste contexto, ao longo de 2020, a Pastoral Carcerária Nacional recebeu, entre 15 de março e 31 de outubro de 2020, 90 denúncias de casos de tortura, envolvendo inúmeras violações de direitos em diversas unidades prisionais espalhadas pelo país. Para efeito de comparação, em 2019 a pastoral recebeu 53 casos neste mesmo período, ou seja, durante a pandemia os casos aumentaram 63,3%. Em 2018, foram 44 casos. Fazendo um comparativo, portanto, nesse recorte temporal entre 2018 e 2020, conclui-se que houve um aumento de 104,54% no número de casos, pouco mais que o dobro.

“Ainda que o número de casos do banco de dados da Pastoral Carcerária Nacional tenha aumentado em 104,54% no período de 2018 a 2020, acreditamos que se as pessoas privadas de liberdade não tivessem sido privadas, também, do contato com o mundo exterior, o número de denúncias seria muito maior. Sendo o cárcere um ambiente de tortura, quanto mais pessoas tiverem acesso à ele, maiores serão as constatações de violações de direitos”, refletem os membros do setor jurídico da pastoral, Lucas Gonçalves, Mayra Balan e Clariane Santos. 

A violação ao direito à saúde da população privada de liberdade foi central nas denúncias recebidas no ano passado: cerca de 67 dos 90 casos (74,44%) dizem respeito à negligência na prestação da assistência à saúde. A violência e tortura também persistem, ampliados pelo maior fechamento do cárcere devido à pandemia: 53 casos de tortura recebidos pela PCN envolveram agressões físicas, 52 diziam respeito à condições humilhantes e degradantes de tratamento – tais como ausência de banho de sol, e 52 envolveram negligência na prestação da assistência material – considerando, exemplificadamente, precário fornecimento de alimentação, vestuário, produtos de higiene pessoal, produtos de limpeza, dentre outros.

Nos 90 casos avaliados pela Pastoral, em 85 (94,44%) houve vítimas encarceradas do gênero masculino, em 6 (6,66%) as pessoas presas torturadas eram mulheres, em 1 (1,11%) houve tortura contra pessoa LGBTQIA+ privada de liberdade e, em alarmantes 22 (24,44%) casos, houve tortura contra familiares. “Neste último dado, destaca-se que todos os casos tratam de familiares mulheres – fato que evidencia o machismo que essencialmente atravessa a tortura contra a família de pessoa presa”, informa o relatório.

O que chama a atenção das denúncias recebidas pela pastoral e encaminhados pelo departamento jurídico da PCN aos órgãos de justiça criminal é que em apenas um caso houve lavratura de inquérito policial para investigar eventual crime cometido pelos servidores, e em outro um caso houve instauração de procedimento administrativo disciplinar contra servidores. “Comparando esses dados com os dos anos anteriores, constata-se que a pandemia serviu de válvula de escape para os órgãos do sistema de justiça negarem atuação efetiva na prevenção e no combate à tortura”, destaca e conclui: “Reconhece-se, portanto, que os dados recolhidos demonstram a persistência do Estado em negar a existência de tortura e violência dentro da unidades prisionais. Resultado disso é omissão e negligência deliberada na prestação efetiva da apuração das denúncias encaminhadas”.

As denúncias chegam à Pastoral pelos mais diversos meios, em que se destacam o formulário presente no site da Pastoral, e-mail, atendimento presencial, telefone e carta. Durante o período de pandemia, as denúncias foram feitas exclusivamente por meios remotos: 68 (75,55%) dos casos chegaram à Pastoral por meio do formulário e 12 (13,33%) por e-mail. Os 10 (11,11%) casos restantes, tiveram no telefone o meio para denunciar. As denúncias alcançam todo o cenário nacional, abrangendo 21 estados da federação e o Distrito Federal.

Sem contato

A pandemia também se tornou um obstáculo para apuração da existência de tortura dentro do sistema prisional. Uma das primeiras medidas adotadas para deter a propagação do vírus nos espaços de privação de liberdade, não só no Brasil mas ao redor do mundo, foi a suspensão de visitas às unidades prisionais, proibindo-se a entrada de familiares, amigos e organizações que prestavam apoio emocional, educacional, religioso ou humanitário.

Por causa da suspensão das visitas – familiares, religiosas e humanitárias – e do fechamento ainda maior da prisão, a mínima fenda que permitia a entrada no sistema prisional e a detectação de toda violência que lá existe foi vedada. “Fato inegável é que a tortura como prática institucionalizada se tornou mais grave durante a pandemia,  especialmente pelo fechamento do cárcere, com a suspensão das visitas de familiares e de órgãos de monitoramento e fiscalização”.

Em 22 denúncias, 24,44% dos casos de tortura, diziam respeito a violações dos direitos dos familiares e amigos/as – especialmente incomunicabilidade, problemas na visita virtual, falta de informações e falta de comunicação entre pessoa presa e família.

De acordo com Sylvia Dias, representante da Associação para a Prevenção da Tortura no Brasil, as famílias cumprem outro papel vital, que é o de prover meios mínimos de subsistência material dentro das unidades, os quais o Estado não fornece (ainda que este seja o seu dever e responsabilidade). Além da alimentação, são frequentemente os e as familiares que se encarregam de prover comida, medicamentos, itens de higiene e roupas. Em muitas unidades, esses provimentos, ou “jumbos”, recebidos pelos e pelas familiares representam a própria sobrevivência do interno em contextos nos quais se deparam com a ausência de simplesmente tudo e onde o acesso a artigos de primeira necessidade, que pareceria um ato cotidiano e simples, se converte num obstáculo real e intransponível”, explica.

Foto via Pastoral Carcerária

Até o início de outubro, 75% das pessoas presas no Brasil seguiam sem receber visitas, somando-se assim mais de seis meses sem o contato presencial com um familiar. Apenas no início de novembro, após mais de sete meses de suspensão, foi anunciado o retorno gradual das visitas presenciais nos presídios de São Paulo.

Cássia é esposa de um detento preso em um presídio no Estado de São Paulo e estava há oito meses sem ver o marido. O reencontro aconteceu pela primeira vez em novembro. Ela explica que as visitas estão liberadas por apenas duas horas a cada 15 dias, de acordo com o calendário da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP). “Encontrei ele muito magro, pois a comida dentro das unidades prisionais são precárias. Não podemos mais levar comida no dia da visita, se ao menos pudéssemos entregar a comida já ajudaria muito”, reclama. E detalha: “As visitas são divididas por raios e não podemos nem dar um abraço em quem amamos, além disso o grupo de risco não pode entrar, incluindo crianças”.  

Outra situação complicada relatada por Cássia foi a falta de comunicação com o marido durante este período, que se restringiu praticamente por cartas, que demoravam meses para chegar. “Tem unidades que estão demorando 27 dias para entregar um Sedex. Eles argumentam que a demora acontece por causa da pandemia, mas esperar tanto assim já é demais. Eu escrevi para ele no dia 27 de dezembro e a carta só chegou hoje, dia 22  de janeiro. Então, continuamos sem muitas notícias”, diz Cássia. Ela afirma que os presos e familiares estão aguardando ansiosos pela vacina, porém não há previsão de data sendo que os presidiários estão no quarto e último grupo de vacinação, conforme orientação do Ministério da Saúde. “Eles estão sem remédios e sem nada, muitos já se contaminaram pela Covid”, denuncia. 

A advogada e mestra em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades pela Universidade de São Paulo (USP), Raissa Carla Belintani de Souza, não acredita em uma vacinação em massa na população carcerária. Ela se baseia em dados históricos para alertar que a possibilidade das pessoas em presídios ficarem imunizadas é mínima. “É alarmante ao se observar que o fornecimento de vacinas nos presídios é garantida a 3% e a 5% da população prisional nas regiões Sul e Sudeste, somente. O maior índice de unidades aptas a garantir a vacinação de pessoas presas é verificado na região Nordeste, com 16% de estabelecimentos com estrutura para implementar essa política pública”, informa.

Desencarceramento falho e elitista

Uma das soluções adotadas por diversos países e recomendada pelo próprio CNJ foi o desencarceramento de pessoas presas, através da Resolução 62, para que elas não tivessem suas vidas postas em risco. Para a Pastoral, esta resolução teve pouca eficácia, pois para a entidade o elitismo e o punitivismo do Judiciário, que insiste em prender a população preta, pobre e periférica, “é o perfeito aliado para um vírus letal, que se espalha facilmente nas prisões por conta da superlotação e condições precárias de existência”.

Apesar da sugestão normativa do CNJ, o judiciário continuou o mesmo: elitista, punitivista e ignorante quanto à realidade prisional. Maior exemplo desta definição da Pastoral foi o caso da liberação de Fabrício Queiroz, em 10 de julho, pelo presidente do Supremo Tribunal de Justiça, embasada na recomendação 62 do CNJ. O ministro João Otávio Noronha determinou a liberação de Queiroz e a esposa Marcia Oliveira de Aguiar, para cumprir a pena em casa, enquanto negou dezenas de pedidos de soltura com risco de Covid-19 a outros detentos. Naquele mesmo mês, o jovem negro, Lucas Trindade, de 28 anos, preso em flagrante em 2018 por porte de 10 gramas de maconha, teve três recursos negado pelo TJMG e morreu vítima do coronavírus em presídio no interior de Minas Gerais.

A Recomendação nº 62 CNJ também faz referência à Resolução 287 do CNJ, que classifica as pessoas indígenas em privação de liberdade como pertencentes ao grupo de risco da Covid-19, de forma que deveriam se enquadrar como destinatárias de medidas desencarceradoras em decorrência da pandemia. O relatório da Pastoral informa que não se pôde observar esforços consideráveis do sistema de justiça criminal durante a pandemia do coronavírus para aplicação de medidas desencarceradoras para pessoas indígenas. Como exemplo do estado do Maranhão, que dentre 16 homens indígenas presos, um testou positivo para Covid-19. Enquanto em Roraima, das 17 mulheres presas na cadeia pública de Boa Vista, 11 delas testaram positivo para a doença e dentre os homens, não foram informados quantos testaram positivo para Covid-19, mas o estado informou que houve o registro do falecimento de um homem indígena, sem especificar qual povo pertencia.

Segundo o relatório da pastoral, no Supremo Tribunal Federal, apenas 6% dos habeas corpus que chegaram à corte e 7 resultaram em liberdade ou em prisão domiciliar. Em São Paulo, estado com maior população carcerária do país, pesquisa do Insper mostrou que, entre 18 de março e 4 de maio do presente ano, a corte paulista denegou a ordem de Habeas Corpus em 88% dos casos. Como fundamento, os magistrados sustentaram que a epidemia não implica em concessão automática da prisão domiciliar, que “só os astronautas estão livres da Covid, que a soltura massiva de presos por Covid-19 pode gerar caos social”, dentre outras aberrações argumentativas falaciosas. A desobediência e o punitivismo é tamanho que, segundo a Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, em 26 de outubro de 2020 ainda havia 64 mulheres gestantes e 39 lactantes presas em São Paulo.

Para o Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas do Conselho Nacional de Justiça a adesão à Recomendação 62 CNJ em seus diferentes aspectos foi bastante positiva. Em resposta a reportagem da Mídia NINJA, o Conselho avalia que além das orientações técnicas gerais, criou-se um espaço de autonomia para que tribunais e juízes aplicassem as medidas de acordo com as realidades locais e também a partir da análise de cada caso.

“Segundo o último levantamento do CNJ sobre o tema, publicado em junho de 2020, cerca de 32,5 mil pessoas foram retiradas emergencialmente das prisões devido à pandemia, medida para a proteção da saúde coletiva tanto das pessoas presas quanto dos próprios trabalhadores do sistema prisional e do socioeducativo”, informa.

Tortura contra as mulheres presas

O grupo de trabalho da PCN produziu um capítulo a parte denunciando a tortura contra as mulheres presas que mostra com preocupação o crescimento da população feminina no sistema penitenciário brasileiro. De acordo com o Infopen de dezembro de 2019, o encarceramento feminino aumentou de 36,4 mil mulheres em 2018 para 37,2 mil mulheres em 2019, aumento de 1,6%. Chama a atenção que essa população feminina é composta majoritariamente por mães, que estão longe de seus filhos/as, além de serem jovens, negras, com baixa escolaridade e que poderiam estar respondendo por seus crimes em seus lares, perto dos seus familiares, auxiliando assim para a redução de riscos de transmissão da Covid-19 nas prisões.

A Pastoral Carcerária afirma que das cerca de 37 mil mulheres privadas de liberdade, 19.426 são presas grávidas, parturientes, mães de crianças de até 12 anos e idosas: ou seja, mulheres que não deveriam estar presas, sem contar os delitos cometidos sem violência, presas provisórias e a questão das drogas. “Reforçamos que todas essas situações, que ferem a dignidade humana e o descumprimento de direitos já assegurados configuram-se como tortura, cometida de forma sutil e velada por quem deveria garantir e proteger a vida: o Estado”, declara Rosilda Ribeiro.

A Pastoral Carcerária para a Questão da Mulher Presa informa que ainda não é possível identificar o verdadeiro impacto causado pela pandemia da Covid-19 nos presídios femininos, pois não há testes para todas as privadas de liberdade, agravando a subnotificação dos casos diagnosticados. Tanto para as presas como para os agentes penitenciários, somente são testados quando testados quando apresentam alguns sintomas ou tiveram contato com pessoas que testaram positivo. Neste sentido, quem for assintomático irá transmitir o vírus, contaminado um número bem maior do que foi e está sendo divulgado.

Para Monique de Carvalho Cruz, assistente social e membra da Frente Estadual pelo Desencarceramento do RJ, passou da hora de questionar as bases do sistema moderno-colonial de gênero que se estrutura pela justiça criminal e pelo encarceramento seletivo em massa. Ela cita Angela Davis para resumir o trabalho que há pela frente. “Abolir as prisões é o primeiro passo em direção à liberdade que continua sendo uma luta constante”.