Na noite do dia 21/4, a sede do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), em Belém (PA), foi invadida e dois dos seus dirigentes, que cumpriam agendas na capital e dormiam ali, foram espancados e assaltados. Os criminosos, provavelmente, agiam a soldo de grileiros de terras, ameaçaram retornar e executar quem estivesse por lá.

Operação de fiscalização do Ibama contra o garimpo ilegal na Terra Indígena Kayapó (PA), em 2017 | Foto: Felipe Werneck / Ascom Ibama

Na semana anterior, no Vale do Javari (AM), no outro extremo da Amazônia, uma quadrilha armada invadiu uma aldeia Kanamari, ameaçando um massacre, se os indígenas resistirem à extração ilegal de madeiras e a pesca predatória em seu território, atividades com que o narcotráfico lava dinheiro. Os invasores falavam espanhol. O crime ocorreu na mesma região em que Bruno Pereira e Dom Phillips foram assassinados, no ano passado.

Houve, no final de março, pelo menos duas ocorrências de resistência armada a ações do Ibama e da Polícia Federal para retirar garimpeiros da Terra Indígena Yanomami (RR-AM), na fronteira com a Venezuela. Também há presença do crime organizado na extração predatória de ouro e cassiterita na região.

Violência em alta

Alianças e sobreposições do crime organizado com crimes ambientais estão no centro dos estudos de Aiala Colares, professor da Universidade Estadual do Pará, que coordenou uma pesquisa sobre o tema, em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O trabalho destaca a interiorização das facções criminosas no Norte do país e a sua chegada a territórios de comunidades tradicionais. O último anuário do Fórum, de 2021, reportou uma queda de 6% nas mortes violentas no Brasil, enquanto na região houve um aumento de 9%.

A atuação do crime organizado na Amazônia não se resume à região da floresta e as suas conexões vão muito além e afetam todas as áreas. Fiéis de uma igreja evangélica de Santana (AP viveram momentos de pavor na noite do dia 23, quando membros de uma facção promoverem ataque a rival dentro do templo, deixando três mortos e cinco feridos, inclusive uma criança de três anos, que levou dois tiros e está em estado grave.

Fiscalização do Ibama na Terra Indígena Mekrãgnoti (PA), em 2016 | Foto: Felipe Werneck / Ascom Ibama 2016

Um dia antes, em Manaus (AM), um policial e outros dois homens foram executados no meio de uma festa, no bairro do Tarumã. A Polícia Militar informou que criminosos invadiram o evento e fuzilaram duas vítimas. O policial que trabalhava como segurança da festa reagiu e foi baleado no rosto.

O Instituto Igarapé publicou uma análise de mais de 300 operações da Polícia Federal, realizadas entre 2016 e 2021, que mostra vínculos de organizações criminosas da Amazônia em 24 estados. Grupos ligados a crimes ambientais – como extração ilegal de madeira, garimpo, desmatamento e grilagem de terras – também atuam em outras frentes criminosas: fraudes, lavagem de dinheiro, tráfico de drogas e pessoas, crimes contra o sistema financeiro e sonegação fiscal.

Em todo o Brasil, o estudo identificou a presença dessas quadrilhas em 254 municípios, com destaque para estados de fora da Amazônia Legal, como São Paulo, Paraná e Goiás. A atuação criminosa não se limita ao território brasileiro: na América do Sul, as operações da PF tiveram desdobramentos na Guiana Francesa, Venezuela, Suriname, Colômbia, Paraguai e Bolívia.

Uma poderosa frente de grilagem de terras e de desmatamento ilegal avança ao longo da Transamazônica, no sul do Amazonas, estado que vem liderando os alertas de desmatamento emitidos pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), superando Mato Grosso e Pará. O Ibama embargou rebanhos bovinos deslocados para as terras griladas, o que provocou um virtual levante dos prefeitos da região, com apoio de congressistas para pressionar o governo federal, em favor de interesses criminosos.

O conluio entre frentes predatórias e bancadas parlamentares regionais contrasta com a posição assumida por autoridades federais. Luís Roberto Barroso, ministro do STF, disse que “o Brasil corre o risco de perder a sua soberania sobre a Amazônia para o crime organizado”. Na mesma rota, o presidente do Senado declarou que o “estado paralelo na Amazônia é motivo de alerta e reação”. Mas, em vez de investigá-lo, o Senado instalou uma CPI para criminalizar a atuação das ONGs.

Defesa ineficiente

A postura dos órgãos de segurança diante da criminalidade generalizada na Amazônia é de leniência e dissimulação. O corporativismo prevalece sobre a cooperação. O Exército afirma que a competência para combater ilícitos é das polícias e que as Forças Armadas atuam na defesa das fronteiras e da soberania nacional, com foco nas “ameaças externas”. Porém, não havendo ameaça de guerra com os países vizinhos e sendo transnacional o crime organizado, esse conceito fica defasado.

Além disso, essa não é a divisão de competências estabelecida pela legislação. O artigo 17-A da Lei Complementar 97/1999 diz que “cabe ao Exército Brasileiro, além de outras ações pertinentes, IV – atuar, por meio de ações preventivas e repressivas, na faixa de fronteira terrestre, contra delitos transfronteiriços e ambientais, isoladamente ou em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo”. Significa que, na faixa de 150 km ao longo de todo arco fronteiriço amazônico, o papel do Exército prepondera, também, no combate a ilícitos.

As estruturas da Polícia Federal e das polícias estaduais são insuficientes para dar cabo da demanda. Desde que o sistema penitenciário amazônico se internacionalizou, com a transferência de chefões do narcotráfico do Sudeste para lá, a barra pesou de vez. De um lado, as polícias sofrem com a cooptação pelo crime organizado; por outro, pelo aumento de agentes mortos em seu combate e a precariedade das condições de trabalho, incluindo a indigência de salários e treinamento.

O estado brasileiro fez grandes investimentos na estrutura de defesa da Amazônia, desde o Projeto Calha Norte ao Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam), que não dão o retorno esperado. Batalhões de fronteira podem ter efeito dissuasório, ou assistir comunidades locais, mas, dispersos, não têm como enfrentar o crime organizado. E não sabemos a quantas andam os olhos do Sivam, diante da profusão de aeronaves e pistas de pouso clandestinas.

A extensão da Amazônia e do arco fronteiriço é, sim, um grande desafio logístico e operacional para a segurança pública, como para as demais políticas públicas. Mas a questão central é outra: a falta de comando estratégico e de articulação de esforços, com baixo investimento em inteligência, tanto policial quanto militar. Por essa pegada estratégica é que se poderia realocar e reorientar a atuação das grandes estruturas de segurança de que dispomos.

Viver na Amazônia – morar, transitar, trabalhar, conviver – é, sempre, viver perigosamente. Enquanto não houver uma revisão das políticas de defesa para a região que encare os seus reais desafios, presentes e futuros, ela será cada vez mais perigosa.

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