Tributar melhor os mais ricos: Sul Global negocia na ONU reforma do sistema tributário internacional
Primeira rodada da Convenção da ONU sobre Cooperação Tributária em NY debateu sistema que garanta direitos e educação.
Uma série de negociações aconteceram nesta semana na Convenção das Nações Unidas sobre Cooperação Fiscal Internacional, em Nova York (EUA), com um objetivo ao mesmo tempo urgente e audacioso: reformar o sistema fiscal internacional.
Enquanto países do Sul Global, liderados pelo G77 e pela União Africana, defendem um acordo robusto e vinculante para combater a evasão fiscal e garantir justiça tributária com reparação histórica decolonial, nações ricas, como a União Europeia, resistem a compromissos mais firmes.
A sociedade civil global organizada tem defendido presencialmente uma reforma que financie adequadamente os serviços públicos, de forma a garantir a igualdade de gênero, o enfrentamento da crise climática global e assegurar os direitos humanos a todas as pessoas. Estivemos participando, ao lado de movimentos internacionais e regionais que lideram as ações da sociedade civil, como a Global Alliance for Tax Justice (GATJ) e a Latinidad.
Em alto e bom som, a sociedade civil pede previsibilidade para a garantia dos direitos humanos, e não para os lucros de empresas, como disse Simon Vinge, representante da Public Services International (PSI) em nome da sociedade civil global, em sessão que debateu os direitos sociais da Convenção na primeira semana de negociações, entre 04 e 08 de agosto.
Mais de 100 organizações de todo o mundo – entre elas, a GATJ e a Campanha – defendem uma série de propostas. Veja os principais pontos do documento:
- Substituição do sistema de preços de transferência por tributação unitária
Eliminação do atual sistema de preços de transferência, que permite às multinacionais manipular transações entre subsidiárias para reduzir impostos. Em seu lugar, defendemos a adoção de um sistema de tributação unitária com repartição formulária, ou seja, os lucros globais das empresas seriam taxados como uma única entidade. Isso inclui a criação de uma fórmula justa para distribuir os direitos tributários entre países, baseada em indicadores reais de atividade econômica (como vendas, empregos e ativos em cada jurisdição), complementada por uma taxa mínima efetiva de imposto corporativo para evitar a concorrência fiscal predatória. - Tributação progressiva ambiental (princípio do poluidor-pagador)
Inclusão explícita de um subcompromisso sobre tributação ambiental progressiva na Convenção, alinhado ao princípio do poluidor-pagador. Isso envolveria a criação de impostos específicos sobre poluição (como emissões de carbono e plásticos) e sobre os lucros de setores altamente poluentes (como combustíveis fósseis). As receitas geradas seriam direcionadas para financiar mecanismos globais de proteção ambiental, como os fundos climáticos da ONU, em linha com decisões do Compromisso de Sevilha (produzido na 4ª Conferência Internacional sobre o Financiamento do Desenvolvimento, a FfD4). - Princípio de responsabilidades comuns mas diferenciadas (CBDRC)
Necessidade de incorporar o princípio CBDRC, isto é, garantir um tratamento diferenciado para países em desenvolvimento, de acordo com as suas capacidades. Isso inclui períodos de transição mais longos para implementar medidas complexas (como a troca automática de informações fiscais) e flexibilidade para equilibrar objetivos de desenvolvimento com metas ambientais. O princípio também deve ser aplicado em áreas como tributação ambiental, onde países em desenvolvimento precisam de margem para crescer economicamente enquanto cumprem obrigações ambientais. - Transparência fiscal
São demandados três pilares de transparência: troca automática de informações fiscais entre países; registros públicos de beneficiários efetivos (pessoas físicas por trás de empresas e estruturas jurídicas); e publicação individualizada de relatórios país por país (CBCR) das multinacionais. Além disso, o documento pede transparência sobre incentivos fiscais concedidos a corporações e a identificação de facilitadores de abusos fiscais (como bancos, consultorias e paraísos fiscais). - Tributação de indivíduos de alto patrimônio
Urgência de combater a evasão fiscal de pessoas ricas, propondo medidas como maior transparência sobre riqueza offshore (incluindo a criação de registros globais de ativos) e tributação efetiva sobre renda, patrimônio e ganhos de capital desses indivíduos. Essas medidas também visam reduzir desigualdades e gerar recursos para necessidades sociais e ambientais, em conformidade com o Compromisso de Sevilha. - Mecanismos de cumprimento fortes
A proposta inclui a criação de dois tipos de mecanismos: para países signatários que descumprirem as regras (com possibilidade de sanções) e para jurisdições não cooperativas que se recusarem a aderir à Convenção (como inclusão em listas negras e aplicação de medidas coercitivas, como retenção de impostos em transações com esses países). - Participação da sociedade civil e sindicatos
O documento critica a exclusão atual de observadores das reuniões online dos grupos de trabalho e exige participação plena em todas as sessões, incluindo as informais. Argumentamos que essa participação é essencial para a legitimidade do processo e tem precedentes em outros comitês da ONU. Argumentamos que a atual limitação de acesso das organizações da sociedade civil às reuniões virtuais viola o parágrafo 21 dos Termos de Referência e prejudica a transparência do processo. - Incorporação do Compromisso de Sevilha
O texto destaca trechos específicos do Compromisso de Sevilha que devem ser refletidos na Convenção, incluindo: promoção de sistemas fiscais progressivos; tributação eficaz de recursos naturais; integração de perspectiva de gênero na tributação; e consideração de fatores ambientais em políticas fiscais. - Banco de dados público de CBCR e registro global de beneficiários efetivos
Propomos a criação de um banco de dados centralizado, gerido pela Convenção, para armazenar e tornar públicos os relatórios país por país das multinacionais, bem como um registro global de beneficiários reais de empresas e estruturas jurídicas. - Mecanismos de financiamento global via tributação
São sugeridos instrumentos como impostos sobre transações financeiras e sobretaxas sobre setores poluentes (como combustíveis fósseis), cujas receitas seriam direcionadas para fundos globais de desenvolvimento sustentável e proteção ambiental. - Revisão de princípios (direitos humanos)
Inclusão no texto da Convenção de referências explícitas a direitos humanos, gênero, saúde e meio ambiente, além da consolidação do princípio de progressividade tributária.
Evento paralelo da sociedade civil
Em um evento paralelo à Convenção, representantes da sociedade civil de todo o mundo discutiram problemas estruturais do atual sistema fiscal global e apresentaram reivindicações para uma reforma pautada na justiça social.
As propostas se referem a um foco em tributação adequada sobre a renda dos mais ricos, sobre serviços digitais e para corporações, de modo a transformar um sistema que ainda é profundamente injusto para os países do Sul Global, que são privados de direitos tributários.
As organizações pressionam por anos para que as negociações tributárias sejam trazidas à ONU dentro de discussões verdadeiramente transparentes, com cada país devidamente representado.
Participaram com falas no evento as/os especialistas Tove Ryding, da Rede Europeia sobre Dívida e Desenvolvimento; Nathalie Beghin, do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), Latindadd e Rede de Justiça Fiscal da América Latina e do Caribe; Evelyn Mwendo, da Tax Justice Network Africa; e Tony Salvador, da Third World Network.
“Como um grande grupo diversificado, temos propostas e demandas para tornar esta convenção realmente eficiente e justa. Trabalhamos juntos em nossas submissões com proposições detalhadas. Precisamos de uma Convenção Tributária da ONU justa, equitativa, progressiva, eficaz, inclusiva, sustentável e transparente”, disse Lison Rebinder, da Global Alliance for Tax Justice, que fez a mediação do debate.
Necessidade do marco global
“Temos mais de 3.000 tratados tributários bilaterais, alguns deles datando de antes do fim do colonialismo, alguns extremamente desatualizados. Há alguns padrões internacionais que, na melhor das hipóteses, foram parcialmente implementados. Eles foram escritos na OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico], o que sempre trouxe a preocupação de que foram escritos em favor da OCDE”, apontou Tove Ryding.
Não é surpresa que isso não esteja funcionando, ela diz, e o abuso fiscal internacional em larga escala é uma consequência disso. Ela lembra que nunca existiu um verdadeiro marco tributário global, e alerta que, sem esse marco, negociações diversas – de desenvolvimento e educação a saúde e proteção ambiental – se tornam extremamente difíceis.
“Tenho acompanhado esses processos há mais de 20 anos, e meu único pedido é: quando falamos em encontrar novos recursos, por favor, não chamem de ‘recursos novos e adicionais’? Porque não são realmente novos. Discutimos as mesmas fontes há anos. Muitas vezes as chamamos de inovadoras. Não é realmente inovador. São ideias como: ‘Podemos tributar transações financeiras? Podemos tributar barcos ou aviões?’”, disse.
“Quanto mais evitarmos ter protocolos separados para tudo, mais teremos um sistema sustentável e coerente para o futuro”, pontuou.
Ela destacou o exemplo dos Estados Unidos que não raro participam das negociações em posição privilegiada, não contribuindo para um debate equânime. “O resto do mundo negocia um marco global coerente. Os EUA são calorosamente bem-vindos para participar em pé de igualdade, mas muitas vezes não o fazem. Mas o que vimos em outras convenções é que, quando o resto do mundo começa a avançar, eventualmente os EUA também seguem. Agora que vimos os EUA saírem em fevereiro, obviamente está bem claro que não temos consenso. Os EUA ficariam felizes em voltar, vetar tudo e parar as negociações. Obviamente, não vamos dizer sim a isso”, ressaltou.
Aumentar os impostos sobre os mais ricos
Nathalie Beghin enfatizou a relação urgente que a reforma tributária deve ter com os direitos humanos e a igualdade de gênero, citando textualmente o Compromisso de Sevilha: “Reafirmamos o imperativo de alcançar a igualdade de gênero. Desenvolveremos e aprimoraremos metodologias e ferramentas para projetar, monitorar e avaliar orçamentos com perspectiva de gênero”, salientou.
Beghin apontou que a justiça fiscal é elemento vital para promover sistemas transformadores de cuidado, enfrentar desigualdades e não ser “letra morta”. “[Ela] deve ser financiada com receitas progressivas, oportunas e suficientes, distribuindo o custo entre estados, setor privado e aqueles que historicamente sustentaram o cuidado com seu tempo e corpo – que são as mulheres.”
Para chegar nesse objetivo, os sistemas tributários progressivos são fundamentais. “Todos sabemos que os ricos não pagam sua parcela justa de impostos, e a carga tributária recai sobre os mais pobres. Então, é realmente fundamental reduzir a proporção de tributação indireta e, ao mesmo tempo, aumentar os impostos sobre os mais ricos”, defendeu.
Ela também disse ser essencial acabar com os paraísos fiscais e as brechas que promovem fluxos financeiros ilícitos e abusos tributários. Para promover a justiça climática, também defendeu que impostos ambientais em nível nacional e global devem promover a progressividade do sistema.
Para dar legitimidade ao processo, a participação social, diz Beghin, deve ser promovida com representatividade e transparência para a inclusão adequada da sociedade civil nos espaços de decisão.
Tributação que financia serviços públicos
Evelyn Mwendo trouxe a perspectiva queniana ao expor que paga impostos que cobrem 40% de sua renda, mas não recebe os serviços públicos adequados. “As razões pelas quais muitos governos africanos fazem isso é porque é mais fácil administrar impostos sobre renda pessoal e IVA [Imposto sobre Valor Agregado]”, explica.
Ela diz que é preciso mudar o foco para a tributação corporativa, pois a grande maioria da população sofre com o peso das práticas de evasão fiscal e fluxos financeiros ilícitos, muito mais do que os países desenvolvidos.
Mwendo defende uma abordagem multilateral, “onde pudéssemos começar, como uma coletividade, para reescrever as regras tributárias internacionais e avançar para um sistema onde os países de origem também possam tributar efetivamente a renda proveniente de atividades econômicas em nossos países”.
“Tributação é o que financia serviços públicos na África. Não é AOD (Ajuda Oficial ao Desenvolvimento)”, afirmou. “O que estamos pedindo é apenas nossa parcela justa – e nada mais. Então, seria justo depois de cerca de 100 anos se beneficiando deste sistema que vocês [países desenvolvidos] deem algum espaço.”
Tributação digital
Tony Salvador destacou os desafios da tributação digital, especificamente as dificuldades de os Estados fazerem com que empresas multinacionais estrangeiras paguem os impostos devidos.
Ele explica que é cada vez mais comum empresas de países desenvolvidos prestarem serviços para países em desenvolvimento. Em muitos casos, se a empresa não tiver uma representação oficial e residente no país, ela não paga imposto sobre a renda.
“E isso, obviamente, se traduz em receitas perdidas para os países em desenvolvimento – receitas muito necessárias que poderíamos usar para educação e saúde, especialmente nos países do terceiro mundo, como as Filipinas e o Sudeste Asiático, de onde venho. Não é apenas uma questão de perda de receita, é também uma questão de política de concorrência. Enquanto eles não pagam imposto de renda, eles têm que competir com vantagem contra empresas locais que realmente pagam impostos sobre a renda”, alerta.
Ele diz que os impostos sobre serviços digitais são essenciais para que haja uma mudança progressista no sistema. Salvador avisa que os países desenvolvidos estão tentando criar uma exceção para a economia digital e o comércio eletrônico.
“Eu não acho que devemos permitir nenhuma exceção. Queremos um quadro abrangente e inclusivo – uma convenção totalmente inclusiva. Além disso, a economia digital está realmente embutida em todos os setores práticos. Fiquei bastante surpreso ao descobrir que ela está até mesmo embutida em mineração, extrativismo, construção, manufatura, etc. Então, regras tributárias, complicadas como são, não podemos ter duas regras tributárias bifurcadas – uma para a economia digital e outra para as economias tradicionais de tijolo e argamassa”, disse.
Próximos passos
A Convenção das Nações Unidas sobre Cooperação Internacional em Matéria Tributária representa um esforço histórico para construir um sistema fiscal global mais justo, inclusivo e eficaz. As negociações, contudo, estão apenas no seu início, e o caminho à frente será moldado pelo diálogo e pela vontade política dos Estados-membros. Os próximos passos são cruciais, com a Terceira Sessão prevista para 10 a 21 de novembro deste ano em Nairobi. Estas reuniões serão fundamentais para avançar com o texto do tratado, superar divergências e consolidar um consenso em torno de um quadro que verdadeiramente responda aos desafios da tributação no século XXI, promovendo uma cooperação internacional robusta e equitativa. O resultado deste processo tem o potencial de redefinir as regras do jogo para a governança fiscal global – e para o mundo.