Por Thiago Galdino

Única produção das regiões Norte e Nordeste entre os finalistas do 2º Festival de Cinema de Xerém (RJ), o curta-metragem Lúcia conquistou o júri e levou dois importantes prêmios: Melhor Roteiro, assinado por Murilo Santos, e Melhor Atriz, com a performance de Gilvânia Araújo. A produção, realizada pela Promissum Pictures, de Mossoró (RN), retrata a jornada de uma professora que, em meio à pandemia, deixa a cidade para dar aulas a um estudante com autismo na zona rural. A narrativa toca em temas como inclusão, empatia e o papel social do educador.

Em entrevista à Cine Ninja, os artistas compartilham bastidores, emoções e os caminhos que os levaram até esse reconhecimento nacional.

Murilo, Lúcia foi um projeto gestado ao longo de quatro anos, parte deles em plena pandemia. Como surgiu a ideia da história e que mudanças ela sofreu nesse tempo até chegar às telas?

Murilo Santos: Lúcia surgiu com a observação da própria pandemia, onde nós, da produtora, contratada para cobrir ações sociais (como entrega de cestas básicas nas comunidades e panetones no natal), visualizávamos uma realidade diferente da nossa. Em paralelo a esses trabalhos, também atendemos à época algumas associações de famílias de pessoas atípicas. Com isso, os elementos foram se encaixando, e a história da professora que sai da zona urbana para a zona rural dar aula a um menino com autismo começou. Nos primeiros tratamentos, o roteiro era voltado muito aos desafios da pandemia. Já no quinto e último focou mais na relação de Lúcia com Marquinho.

Gilvânia, sua atuação como a protagonista de Lúcia lhe rendeu o prêmio de Melhor Atriz no Festival de Xerém. Como foi sua preparação para viver essa professora, e o que mais te comoveu nesse papel?

Gilvânia Araújo: Minha preparação para viver essa professora começou no momento em que li o roteiro. Desde a primeira leitura, fui profundamente tocada pela história. Como professora, me vi refletida em muitas atitudes, dilemas e paixões dessa personagem, especialmente no seu amor genuíno pela docência, na dedicação às crianças e na esperança de um mundo mais inclusivo.

Busquei mergulhar não só nos aspectos técnicos da atuação, mas, principalmente, na escuta: ouvi educadoras reais, conversei com profissionais que trabalham com crianças autistas e tentei entender as camadas de sensibilidade, paciência e firmeza que esse papel exigia. O mais comovente, para mim, foi o vínculo silencioso e transformador entre a professora e a criança. A relação deles me ensinou muito sobre empatia, respeito às diferenças e sobre como, às vezes, pequenos gestos podem gerar grandes mudanças. 

Murilo, o filme tem como eixo uma professora que se desloca até a zona rural para ensinar um aluno autista. Como foi construir essa narrativa com temas tão delicados como inclusão e educação em tempos de crise?

Murilo Santos: Como comentado anteriormente, esses temas me eram comuns naquela ocasião, onde de fato não foi muito difícil fazer uma pesquisa de observação com pessoas atípicas, professores e moradores do campo. Porém, colocar todas essas temáticas no papel requer um cuidado redobrado. Desde o primeiro momento quis retratar a realidade de uma forma simples e comum, sem tantas ênfases e bandeiras levantadas. A professora, que é uma mulher evangélica periférica e que tem como amigo (principal coadjuvante em cena) um homem homossexual. Do outro lado, o garoto com autismo da zona rural que vive o abandono materno, tendo o pai agricultor como seu principal coadjuvante. Esses mundos se encontraram diante da pandemia e a história se desenvolveu. Toda narrativa foi feita para que a leveza e naturalidade passasse entre os personagens, e que o amor de ambos os personagens transparecesse mais do que suas lutas de causa. Nesse meio tempo, apresentamos o roteiro à Associação de Pais e Amigos dos Autistas e TDAH de Mossoró e Região (AMOR), para que fosse verificado o exagero de alguma cena e, dado o OK, seguimos com nossa produção. 

Boa parte do filme foi gravada em Monte Alegre II, com participação de crianças da própria comunidade. Gilvânia, como foi para você filmar nesse ambiente e interagir com essas pessoas?

Gilvânia Araújo: Foi uma experiência muito especial. Gravar em Monte Alegre II trouxe uma verdade e uma energia muito únicas para o filme. A comunidade nos acolheu com muito carinho, e trabalhar com as crianças de lá foi transformador. Elas trouxeram uma espontaneidade e uma força que mexeram profundamente comigo como atriz — e como pessoa também. A gente acaba aprendendo muito nesses encontros, sabe? Não foi só levar uma equipe de filmagem até lá; foi construir algo junto com eles, ouvindo suas histórias, sentindo o lugar de verdade. Isso deu uma camada muito viva e autêntica para o filme, que, para mim, é o que mais importa.

Murilo, você menciona Central do Brasil e Abril Despedaçado como grandes referências. Que elementos desses filmes você procurou evocar em Lúcia? E o que há de original na sua abordagem?

Murilo Santos: Os dois principais filmes referências para Lúcia são esses. Tomando-os como aportes técnicos, buscamos chegar num sertão real em alguns momentos, como no caso de Central do Brasil e no nordeste fantasioso de Abril Despedaçado. Os elementos de cores quentes e frios para simbolizar vida e morte e os cenários e direção dos atores e atrizes principais foram alguns dos elementos que buscamos nessas produções do Walter Salles. A maior diferença é o modo em que foi feito, já que há mais de 20 anos de diferença entre eles, orçamentos diferenciados e, principalmente, Lúcia é um filme do nordeste feito por um nordestino, o que traz uma visão mais real da nossa terra.

Gilvânia, sua atuação tem sido muito elogiada. Que caminhos te trouxeram até esse papel?

Gilvânia Araújo: Fui a última a entrar no elenco. A gestora da escola onde trabalho foi quem me indicou, pois conhecia bem o perfil da personagem, que também é uma professora, e viu em mim algo que se conectava com o que o roteiro pedia. Quando li o texto pela primeira vez, fiquei encantada. Tinha uma delicadeza, uma força silenciosa, ali, que me tocou de verdade. 

A equipe me recebeu com tanto carinho e respeito que desde o começo me senti em casa. O roteirista e a produtora tiveram um cuidado imenso com cada detalhe, e isso fez toda a diferença. Acho que esse acolhimento, somado à identificação que tive com a personagem, me deu segurança para mergulhar de cabeça. Foi um presente que chegou sem avisar e que eu abracei com tudo.

O curta foi premiado entre quase 700 inscritos no 2º Festival de Cinema de Xerém e foi o único representante do Norte/Nordeste na final. Murilo, o que esse reconhecimento nacional representa para você enquanto artista potiguar?

Murilo Santos: Só tivemos essa noção, de fato, quando chegamos lá: que em nossa categoria só tinha o nosso filme concorrendo de todo norte/nordeste. Esse reconhecimento reforça que as políticas público/privadas de incentivo à cultura precisam continuar, pois esse filme é um fruto delas. Mostra também que para além de Natal, também há um bom cinema sendo feito no interior do estado. E, por último, também potencializa a nossa vontade de continuar produzindo o cinema que acreditamos, e que todos consigam ver sentados na sala de suas casas.

Cartaz de Lúcia – Foto: Divulgação
Cena de Lúcia – Foto: Divulgação
Murilo Santos – Foto: Divulgação
Gilvânia Araújo – Foto: Divulgação
Vanessa Karen – Foto: Divulgação

Gilvânia, a história de Lúcia fala sobre compromisso, empatia e missão. Houve algum momento, durante as gravações ou após as exibições, em que você sentiu que esse papel também mexeu com a sua própria forma de ver o mundo?

Gilvânia Araújo: Com certeza! Lúcia não é só uma história bonita, ela tem uma força silenciosa que vai ficando com a gente. Durante as gravações, teve uma cena, em especial, com as crianças da comunidade, em que a escuta e o olhar eram mais importantes que qualquer fala. Ali eu senti, de um jeito muito profundo, o que é realmente estar presente para o outro. Outro ponto: a conexão da Lúcia com a criança autista foi especialmente marcante para mim. Na história, ele não tinha mãe, e a professora vai, aos poucos, se tornando essa figura de referência, essa presença feminina tão necessária na vida dele. Em vários momentos eles extrapolavam e deixavam de ser apenas professora e aluno, tornando-se um vínculo maior. Como uma mãe, mesmo. Isso me tocou profundamente…

Depois que o filme começou a ser exibido, vieram muitos relatos de pessoas que se viram na Lúcia, ou que lembraram de alguém marcante na vida delas — uma professora, uma mãe, uma vizinha. Isso me fez repensar o quanto a gente, mesmo nas pequenas ações do dia a dia, pode ser esse ponto de afeto e segurança na vida de alguém. O papel da Lúcia me ensinou sobre escuta, sobre calma, e sobre como, às vezes, transformar o mundo começa com um gesto simples. Foi uma virada de chave, mesmo.

Desde janeiro, Lúcia tem circulado por escolas e comunidades. Murilo, que tipo de resposta tem recebido desses públicos? Há alguma reação que tenha te marcado especialmente?

Murilo Santos: Desde a primeira exibição no cinema, no dia 29 de janeiro, a recepção ao filme tem nos surpreendido. Professoras saíram chorando do filme, e as crianças animadas. Nas escolas em que passamos exibindo gratuitamente Lúcia, alunos batem palmas ao final de cada sessão. E sempre nos perguntam: Quem é Lúcia? Quem é Marquinho? A verdade é que, mesmo com um filme de ficção, conseguimos mostrar um nordeste tão real que todos acham que é uma história baseada em fatos reais. Para além dos prêmios que ganhamos ou possamos ganhar, a recepção do público foi a nossa melhor recompensa. 

Vale, ainda, salientar o papel de toda a produção nessa jornada, pontuando o papel da nossa produtora Vanessa Karen como um ponto-chave para que essa história saísse do papel.

Gilvânia, o que esse reconhecimento em Xerém representa para a sua trajetória como atriz? Há novos projetos em vista?

Gilvânia Araújo: Não sou atriz, nunca pensei em ser. Entrei nesse projeto de forma muito espontânea, quase sem imaginar a proporção que tomaria. E, olha… foi uma das melhores experiências da minha vida. Me fez abrir um leque gigante de possibilidades, me enxergar de um jeito novo, mais confiante, mais sensível.

O reconhecimento em Xerém representa muito. É um carinho imenso, um sinal de que o que a gente viveu e construiu com tanta verdade chegou no coração das pessoas. Isso, para mim, já é um prêmio e tanto.

Sobre novos projetos… Deus que sabe! Mas estou aberta, sim. Confesso que amei atuar. Se outras histórias vierem, vou receber de braços abertos e com o coração preparado para viver tudo de novo. Mais do que prêmios, Lúcia evidencia um gesto coletivo: filmar com o que se tem, onde se vive, e para quem precisa ser visto. A história dessa professora, criada a muitas mãos e com os pés firmes no chão do semiárido, rompeu cercas simbólicas e geográficas. Gilvânia, Murilo e toda a equipe da Promissum Pictures mostram que o cinema feito no interior do Rio Grande do Norte também tem lugar no mapa da sensibilidade nacional.