Há 84 anos era fuzilado o poeta Federico Garcia Lorca
O assassinato do poeta foi perpetrado, em essência, pela mesma direita reacionária, violenta, manipuladora e intolerante que hoje detenta o poder no Brasil.
Há 84 anos, Federico Garcia Lorca foi morto por ser revolucionário, por criticar o patriarcal em defesa do matriarcal; por reconhecer o valor da cultura muçulmana na Península Ibérica, por defender os direitos do homem contra a alienação de estados autoritários, por igualar classes e raças, como fez com a população cigana; por ter perdido o punho na mesa contra o capitalismo e a mais inútil burguesia, ou por igualar homossexualidade e heterossexualidade. Lorca foi assassinado por enfrentar a extrema direita que logo derrubaria a Segunda República Espanhola.
Quando Lorca foi preso, aparentemente em uma operação policial grande o suficiente para prender um único homem, o poeta foi acusado de três crimes: “ser espião dos russos, estar em contato com eles por rádio, ter sido secretário de Fernando de los Ríos e ser homossexual”
Inscrito na Universidade de Granada em 1914, o jovem Lorca estudou Filosofia e Literatura e Direito, e foi nessa época que ingressou, junto com outros jovens intelectuais, em um centro de convivência – berço de personagens ilustres, alguns dos quais já eram artistas de destaque e outros que viriam a ser reconhecidos em diferentes disciplinas como poesia, literatura, jornalismo, artes, política ou música – chamados de “El Rinconcillo”. As viagens por diferentes regiões da Espanha com os seus colegas estudantes despertaram em Lorca a vocação de escritor, e delas surgiu o seu primeiro livro em prosa intitulado “Impresiones y Paisajes”, publicado em 1918.
Em 1921, Lorca estreou sua primeira obra teatral, The Hex of the Butterfly. Em maio desse ano regressou a Granada onde conheceu o célebre compositor Manuel de Falla, com quem realizou vários projetos em torno da música e do cante jondo. No Dia dos Três Reis de 1923, Falla realizou uma adaptação de Lorca de um conto andaluz atribuído a Cervantes chamado “La niña que riega la albahaca y el príncipe preguntón”, bem como “El misterio de los Reyes Magos”, um auto sacramental do século XIII.
Não me importo com discussões sobre amor ou teatro. O que eu quero é amar
A grande amizade com o pintor Salvador Dalí levou-o a Cadaqués em 1925 e 1927. Estas estadias marcariam profundamente as suas vidas, como se pode verificar na obra Ode a Salvador Dalí, publicada por Lorca em 1926. Dalí conseguiu até fazer Lorca iniciar na pintura e apresentou a sua primeira exposição na Sala Dalmau de Barcelona em 1927.
É verdade que Lorca participou, durante os cinco anos que durou a Segunda República, de diversas atividades como a itinerante companhia universitária de teatro La Barraca, com a qual viajou por toda a Espanha dirigindo espetáculos de clássicos às classes mais pobres, além de promover a troca de ideias e a reflexão sobre a liberdade para alcançar “uma corrente maravilhosa de solidariedade espiritual”. Como homem do teatro, intelectual e entusiasmado com o projeto da República, o apoiou desde o seu campo, o das artes e da literatura, para dar solidez a uma forma de governo democrática e moderna. Porém, o fato de ser correligionário de comunistas, anarquistas, republicanos ou socialistas nessa nobre missão, não o tornava membro de nenhum desses partidos. Na verdade, a República Espanhola não era o único patrimônio de comunistas, socialistas ou anarquistas, embora cada um tivesse sua parcela de poder nela.
Lorca não era militante nem líder partidário e em mais de uma ocasião declarou seu não partidarismo. Referindo-se à militância comunista de Rafael Alberti, Dámaso Alonso coloca o seguinte comentário na boca de Lorca: “Nunca serei político. Sou revolucionário, porque não há poeta verdadeiro que não seja revolucionário”. Porém, Lorca nunca abraçou o mito da neutralidade ideológica e do apolitismo, apesar dos esforços extenuantes do regime de Franco para despolitizar e adoçar sua figura. Ao contrário, seus gestos públicos, entrevistas, cartas e documentos semelhantes mostram que Lorca desenvolveu uma orientação político-social marcadamente de esquerda. Como artista e intelectual, não parava de se envolver na agitada vida política da atávica e negra Espanha que o matou.
“A burguesia espanhola limpa com a língua as feridas dos milionários!”
Indignado com o fascismo e comprometido com a democracia. Lorca adotou uma posição política decididamente antifascista e republicana. Junto com outros intelectuais e artistas, no final da década de 1920 assinou um manifesto crítico com a ditadura de Primo de Rivera; em 1933, ele assinou um protesto contra a perseguição de escritores e a queima de livros pelo governo nazista; condenou publicamente a invasão do fascismo italiano na Etiópia; ele se opôs à acusação de Manuel Azaña durante o governo de Gil Robles; protestou contra a ditadura de Salazar em Portugal; manifestou solidariedade aos perseguidos politicamente pelo regime autoritário de Getúlio Vargas no Brasil e criticou a repressão estadunidense em Porto Rico. Às vésperas das eleições gerais de fevereiro de 1936, ele assinou, em apoio à campanha eleitoral da Frente Popular, o documento Os Intelectuais com o Bloco Popular, cujos signatários reivindicaram “a necessidade de um regime de liberdade e democracia, cuja ausência tem sido sentido tristemente na vida espanhola há dois anos “, aludindo ao biênio conservador do CEDA e do Partido Radical.
“Acredito que ser de Granada me inclina para a compreensão solidária dos perseguidos. Do cigano, do negro, do judeu …, do mouro que todos carregamos dentro”
Indignado com a homofobia e comprometido com a libertação homossexual. Seu maior mérito na luta contra a homofobia foi tentar escrever abertamente sobre a homossexualidade na Espanha nos anos 20 e 30, passando do “amor escuro” vivido nas sombras (“Eu te escondo chorando, perseguido”) para reivindicar, contra forças da caverna muito superiores, o direito de amar livremente, como em The Public, onde se descobre que Julieta é na verdade um menino disfarçado de mulher que anseia por amar sem fronteiras.
O poeta tinha acabado de completar 38 anos, tinha terminado ‘La casa de Bernarda Alba’, o seu “drama da sexualidade andaluza”, tinha uma comédia sobre questões políticas “muito avançada” e estava a trabalhar numa nova peça intitulada ‘Os sonhos da minha prima Aurélia’, escolhida desde a infância na Huerta de San Vicente (Granada).
Enquanto o mundo inteiro admirava Federico como ‘o Homero espanhol’, a mídia espanhola espalhou o boato de que ele tinha relações homossexuais com os componentes do teatro estudantil. “O Estado também dá dinheiro para ‘La Barraca’, onde Lorca e seus anfitriões imitam as qualidades que distinguem Cipiriano Rivas Cherif, seu ‘protetor’. Que vergonha e que nojento!” Rugiu a revista satírica El Duende, à qual foi acrescentada a Falangista FE, que também acusava os “barracos” de levar uma vida imoral, de corromper os camponeses e de praticar o “marxismo judeu”.
O boletim policial afirma que o poeta “foi afastado do Governo Civil por forças dele dependentes e conduzido de carro no final de Viznar (Granada) e nas proximidades do local conhecido como Fuente Grande, juntamente com outro detido cujas circunstâncias pessoais são desconhecidas, foi fuzilado depois de se confessar “. Além disso, revela que foi “sepultado naquele local, muito próximo do solo, num desfiladeiro situado a cerca de dois quilómetros à direita de Fuente Grande, num local muito difícil de localizar”.
A maior parte do trabalho de Federico Garcia Lorca foi publicada após sua morte. O crime realizado pelo regime de Franco só conseguiu fazer durar o seu nome e a sua memória. O assassinato do poeta foi perpetrado, em essência, pela mesma direita reacionária, violenta, manipuladora e intolerante que hoje detém o poder no Brasil. As consequências culturais do regime franquista foram devastadoras para Espanha, assim como, com diferentes matizes, serão as consequências culturais e econômicas para o Brasil após o período bolsonarista.