Vício em apostas online é comparável a epidemia de saúde pública, alerta psicólogo
Altay de Souza, psicólogo e pesquisador, discute as consequências psicológicas e financeiras do crescente fenômeno de apostas no Brasil
Por Andrea DiP, Clarissa Levy, Claudia Jardim, Ricardo Terto, Stela Diogo — Agência Pública
No Brasil, os jogos de apostas online têm se tornado uma preocupação crescente entre especialistas por serem projetados para viciar. A popularidade dos aplicativos de apostas, ou bets, é alimentada pela constante propaganda de ganhos vultosos em um curto período de tempo. Em entrevista ao Pauta Pública desta semana, o psicólogo e pesquisador Altay de Souza alerta para os perigos de uma epidemia ainda silenciosa, oculta nas telas de celulares.
O vício em apostas online pode ser comparado a uma epidemia de saúde pública, alerta o psicólogo e pesquisador que fala sobre as consequências psicológicas e financeiras do crescente fenômeno de apostas no Brasil.
Segundo um relatório da XP Investimentos, essas atividades já movimentam 1% do PIB e comprometem 20% do orçamento livre das famílias mais pobres. Já a consultoria PwC estima que as apostas já representam 1,38% do orçamento médio familiar desses estratos de menor renda, um aumento de cinco vezes em relação a cinco anos atrás, quando era de 0,27%. Souza destaca que a incidência de pessoas usando bets cresce em países com maior desigualdade, fazendo com que muitas busquem soluções rápidas para seus problemas financeiros.
A ausência de regulação efetiva no Brasil também é preocupante. Em 2018, uma lei com regras pouco claras legalizou os sites de apostas esportivas, conhecidos como bets. Em 2023, foi aprovada a Lei 14.790, conhecida como nova lei de apostas esportivas, que, em tese, regula os processos de autorização de casas de apostas físicas ou virtuais, estabelece direitos dos apostadores, regula a publicidade de apostas e também a tributação.
Lobby de empresas de apostas
De acordo com a Fiquem Sabendo, a aprovação dessa lei foi resultado de meses de lobby das empresas de apostas em ao menos 78 reuniões em nove ministérios. Altay de Souza destaca que estratégias como melhorar a educação financeira são insuficientes para combater o vício em apostas, apontando para a necessidade de políticas que reduzam a desigualdade e protejam os consumidores.
[Clarissa Levy] Altay, para começar, eu queria perguntar para você sobre o que já sabemos relacionado aos impactos psicológicos e financeiros dos jogos de apostas online. Alguns dados de uma pesquisa feita pelo Instituto Locomotivo mostram que 46% dos jogadores brasileiros de apostas esportivas online são jovens, de 19 a 29 anos. O levantamento ainda mostra que um terço destes jovens está endividado ou com o nome sujo. Outra análise, feita por uma empresa de consultoria chamada Strategy, aponta que as apostas no Brasil já representam aproximadamente 1,4% do orçamento de famílias de classes mais empobrecidas, das classes D e E com menos poder aquisitivo.
Ano passado fui convidado para adicionar novas variáveis de um questionário que fazia parte de um relatório sobre uso de instrumentos financeiros, chamado “Raio X do investidor”, feito pela Anbima (Associação de Bancos do Brasil). Nesse relatório, tem uma parte sobre stress financeiro e autocontrole e uma parte com estudos de prevalência das bets. Alguns dados do relatório são interessantes. Um deles é que entre 8 e 10% das pessoas que responderam o questionário acreditam que esse é um tipo de investimento. É a mesma coisa que achar que jogar na loteria é um investimento.
Isso tem a ver com outro estudo que a gente fez no mesmo relatório ligado a autocontrole, que já é validado em dezenas de países. A gente perguntou para as pessoas “se eu te desse 100 reais hoje, quanto você aceitaria receber de volta daqui um ano?”.
Essas pessoas pedem cinco vezes mais em média, ou seja, 500 reais. Esse dado varia um pouco, mas é razoavelmente consistente entre vários países. Ao imaginar um investimento financeiro real que dá um retorno de 500% em um ano, há uma dificuldade de base, nem o tráfico de drogas, de pessoas ou armas rende tanto.
Quando pensamos em alguma coisa que vai acontecer daqui a um ano, nos inclinamos a distorcer esse fato, porque não temos controle do tempo. A bet é um jogo que tem relação entre comportamento e tempo, base de toda a psicologia experimental. É como se você colocasse os seus comportamentos dentro do tempo e precisasse de uma plataforma para isso.
[Clarissa Levy] Alguns pesquisadores têm falado sobre a febre das bets como uma questão de saúde pública no Brasil. Pode falar mais sobre isso?
Eu dou aulas de epidemiologia na universidade, dentro dela tem uma área que se chama epidemiologia global, que trata das grandes questões atuais, um exemplo são as questões ligadas à saúde pública. As doenças vão pegar você independentemente da sua nacionalidade.
As bets são a mesma coisa, porque todos somos pessoas, temos dificuldades de autocontrole e todos nós distorcemos o tempo porque não o produzimos. Já existem trabalhos para regulamentação de bets. Um exemplo é a Holanda, que já tem uma legislação para jogos — para jogos como o “tigrinho” e para jogos de videogame.
Esses jogos funcionam como um cassino, só fazem uma manutenção ano a ano e vão se lançando. Já temos evidências de que as bets fazem mal, que melhorar a educação financeira das pessoas não funciona. A única solução seria as pessoas compreenderem o tempo de uma forma melhor, só que isso é fisiológico. Inclusive, no relatório “Raio X do brasileiro” e em outra literatura, falamos que outra variável crítica para reduzir as bets é reduzir a desigualdade.
O Brasil é o país do mundo em que a incidência de pessoas que usam bets cresceu mais vertiginosamente na história. No ano passado, as apostas não eram conversa de ninguém, hoje são de todo o mundo, é como se fosse uma epidemia mesmo. Parece que esses esquemas crescem muito mais rápido em países mais desiguais. E a explicação vai para o autocontrole: se a pessoa é de uma origem muito desfavorecida ou está em alguma penúria financeira, quer uma solução rápida.
O jogo do tigrinho é pior que as bets, porque o jogo do tigrinho é quase que um cassino que tem um algoritmo programado para no início você ganhar mais. Isso que te segura. É igual a pessoa que você conhece que fez a bet e ganhou uma vez, pegou um empréstimo, ganhou, e aí não sai mais. A arquitetura é feita para isso.
Outro exemplo é a pirâmide financeira. O esquema Ponzi ou pirâmide tem um monte dessas pirâmides por aí que são a mesma coisa. Você me dá uma grana, e eu te dou um retorno rápido. Na primeira e segunda vez eu te devolvo mesmo, e depois é só ficar enrolando. Isso é exatamente o mesmo esquema das bets. As bets são um problema de saúde pública porque elas pulverizam muito mais o acesso a esse tipo de fraude.
[Clarissa Levy] Pensando um pouco na responsabilidade coletiva, temos o marketing das bets rolando no maior campeonato de futebol do país, o Brasileirão. Esse campeonato agora tem o nome de uma casa de apostas e sua publicidade desregulada, diferente de como acontece em outros países. Nesses termos, você pode dizer mais sobre esse combo marketing e regulação frágil?
Novamente, isso é uma reedição, não é nada de novo. Claro que o marketing e a publicidade têm culpa total nisso. O marketing não é algo que se aprende por consciência, ele aprende por punição. Em geral, punição positiva ou negativa. Sendo um dono de uma casa de apostas e tendo dinheiro, sabendo que vai haver uma regulamentação, porém vai ser daqui a dois ou três anos, eu faria um lobby para atrasar isso o máximo possível. A regulação tem que vir o quanto antes.