Por Kaio Phelipe

Autor, palestrante, ativista e funcionário público, Jordhan Lessa é fundamental para o debate sobre transmasculinidades no Brasil. Aos 57 anos de idade, o autor dos livros Eu, trans (Editora Metanóia) e Missão vencer (Editora Proverbo) contou um pouco sobre a sua trajetória, a relação de amizade com João W. Nery, paternidade e a transformação que teve em sua vida com a chegada de seu neto. Jordhan Lessa, nome escrito com dh de Direitos Humanos, passou por internações compulsórias em manicômios e pela Febem, antiga instituição socioeducativa para menores, antes de passar em quinto lugar no concurso para guarda municipal e utilizar a sua história para consultorias e palestras.

É preciso capacitar pessoas, não tem outra maneira. É preciso fazer a manutenção dessa estrutura”, afirma. Confira abaixo a entrevista na íntegra.

Quando se tornou ativista?

Uma pessoa da comunidade LGBTQIAP+ não tem a data exata de quando começa o ativismo. No momento em que a gente se reconhece ou se vê diferente da maioria, a gente já se torna um ativista, mesmo que seja de forma inconsciente. Você chega em um lugar, as pessoas te olham diferente e você precisa se impor. Se não for dessa forma, a gente não chega a lugar nenhum. Isso é uma forma de ativismo. A partir do momento em que você tem que fazer uma força maior do que as demais pessoas fazem para ocupar o mesmo espaço você já é um ativista. Hoje eu tenho cinquenta e sete anos e acho que sou ativista desde sempre. Eu era uma criança muito diferente das outras. Na escola, eu já era visto de outro modo. Sempre precisei fazer melhor do que todo mundo para que as pessoas reconheçam a minha capacidade. Mas, pensando em uma data que tenha marcado a minha luta, sou ativista desde 2011, que foi quando publiquei a minha primeira matéria na Revista Época falando de violências sexuais e dos assassinatos contra pessoas LGBTQIAP+, quando aquele menino de São Gonçalo (RJ), Pedro Ivo, foi assassinado com catorze anos. Em 2011 o meu ativismo se tornou público, mas sou ativista desde sempre.

Como foi a sua passagem pela Febem?

Esse fato aconteceu no início da década de 1980, bem no início. É importante lembrar que, nessa época, ainda não existia o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). Também é importante lembrar que não se usava a palavra homossexualidade, se falava homossexualismo e era visto como doença. Então qualquer pessoa que tivesse uma característica fora do padrão, como, por exemplo, síndrome de down, era motivo para ser internada compulsoriamente em um manicômio ou ser levada para instituições socioeducativas para menores infratores. A questão familiar e de classe atravessa bastante esse assunto. Em alguns casos, a criança era levada para uma dessas instituições pela própria família, por não saber como lidar com ela. Fui para a Febem depois de ter saído de dois manicômios e fui levado para lá pela minha mãe. Foi uma experiência muito aterrorizante. Era aqui no Rio de Janeiro, na Ilha do Governador, e hoje é uma unidade do DEGASE (Departamento Geral de Ações Sócio Educativas). Eu fui levado para lá como se fosse uma possibilidade de cura.

Como foi a sua experiência com eletrochoques e internações compulsórias?

Isso também ocorreu na década de 1980, mas violências como essa acontecem até hoje. A gente ainda tem internação compulsória, que foi exatamente o que eu passei. A última clínica por onde passei existe até hoje. Tem outro nome, chamam de casa de repouso porque é mais bonito, parece um clube, com quadra de esporte e salão de jogos, mas tem uma parte sombria que não fica exposta. No caso dos eletrochoques, não posso afirmar se ainda existem, mas tem uma vertente da medicina que acha que novas conexões neurais acontecem quando você toma um eletrochoque e faz com que você deixe de ser quem é. Foi com essa justificativa que fui internado. O Estado chancelava esse tipo de coisa e acreditava que não tinha nada de errado com isso. 

O que é estupro corretivo?

Essa pergunta é muito boa porque as pessoas, geralmente, falam estupro coletivo, mas são coisas distintas. Estupro coletivo é quando vários criminosos participam da violência sexual. Estupro corretivo é quando o criminoso acha que vai corrigir o seu jeito de ser. Ele estupra com a narrativa de que vai ensinar alguém a ser mulher, que a pessoa precisa de um homem como ele. Alguns corpos estão muito vulneráveis a estupros corretivos. Antes, quando me liam como uma pessoa feminina, eu passei por isso. Agora, com a leitura masculina, continuo correndo esse risco. Para esses criminosos, o que conta é o que você tem dentro da calça. Não gosto de usar o termo “sexo biológico” porque o corpo inteiro é biológico: olho, língua, nariz, orelha, tudo isso é biológico. Então, de acordo com a anatomia dos genitais, quem comete o crime do estupro corretivo acha que o gênero que te impuseram tem que estar de acordo com a genitália. Corpos femininos, corpos trans e gays afeminados estão muito sujeitos a isso.

Como foi gerar uma criança e como foi o processo de se tornar avô?

Gerar uma criança foi aterrorizante. Quando eu descobri que estava gestando, já tinha completado vinte e uma semanas de gestação. Hoje, quando se tem o debate sobre o aborto, que fala exatamente das vinte e uma semanas, mexe muito comigo. Evito entrar em alguns assuntos nas redes sociais porque não tenho saúde para ficar respondendo à altura. É uma situação que eu senti na pele. Hoje você vê uma pessoa transmasculina nesse debate e as pessoas enchem de comentários dizendo que não temos nada a ver com isso por sermos homens. E eu acho que não tenho que ficar dando explicação para falar sobre determinadas coisas. Não foi nada fácil. Para se ter ideia, eu tive muitos pesadelos depois que descobri a gestação. Decidi não abortar e essa é uma decisão muito pessoal. Decidi porque eu sabia que não tinha família, não tinha ligação de sangue com ninguém, já sabia que eu era adotado. Quando vi a ultrassom, que não é como hoje, eu vi meu filho com o dedo na boca. Hoje entendo que isso é usado para que as pessoas desistam do aborto. Hoje eu entendo que esse é um mecanismo para fazer com que as pessoas que foram violentadas desistam de abortar. Tem um apelo emocional quando você vê essa cena. Na época, eu tinha dezesseis anos e não tinha a menor noção disso. Quando vi a imagem do meu filho com o dedo na boca, essa imagem me quebrou. Apesar de ter sido da forma que foi, através do estupro corretivo, eu optei por não abortar. Vinte e uma semanas correspondem a cinco meses e os meses seguintes foram de muitos pesadelos. Eu sonhava com um mar de sangue borbulhando, era um pesadelo recorrente, que me fazia acordar de madrugada ou durante qualquer cochilo que eu desse. Isso ilustra o tamanho do meu desespero. Depois que meu filho nasceu, ele foi retirado de mim e ficou com a minha mãe. Ele passou os primeiros setes anos de vida com ela. Ele era a única pessoa que eu tinha certeza no planeta inteiro que tinha uma ligação comigo. Ele foi crescendo e me deu um neto em 2018. E aí, quando o meu neto nasceu, essa história toda passou a ter outro significado. Hoje eu entendo que o meu neto veio para consertar um carma familiar, que até então vinha sendo muito pesado. É meio complicado e nunca falei isso em entrevista. A minha história foi muito complexa por não saber minhas origens. Aos cinquenta anos, descobri que sou adotado, mas fui gerado na mesma família e, na verdade, sou filho do cara que conheci como meu avô. A pessoa que conheci como mãe é minha irmã. Tudo por causa de uma mentira. Minha mãe me fez passar por muitas violências, mas eu imagino a cabeça dessa mulher, em 1967, em uma família patriarcal, onde o patriarca tomou as atitudes que bem queria e o restante da família era formado por mulheres. O patriarca falava e todo mundo baixava a cabeça. Nesse contexto, ele teve um filho fora do casamento, que sou eu. Ele levou o filho para dentro da família para que a filha recém-casada, que é a mulher que conheci como mãe, registrasse. Olha o tamanho dessa violência. Ela me registrou em seu primeiro ano de casamento, sem ter gerado nenhum filho. O primeiro filho dela foi o pai dela que gerou fora do casamento dele. Aí eu fico pensando como era para essa mulher olhar todo dia para a minha cara e pensar que aquela criança que ela criava era fruto de uma pulada de cerca do pai. A criança foi crescendo e se mostrando diferente dos padrões. Não era a menina delicada, com os hábitos esperados. Todas essas violências, agora eu entendo, se iniciaram com a mentira que meu avô contou e isso destruiu a vida da família inteira. Isso não justifica o que ela me fez passar, mas ilustra muita coisa. Mas meu neto chegou e ele tem uma família muito estruturada. Meu filho tem uma cabeça muito boa, minha nora é professora e também tem uma cabeça maravilhosa. Meu neto tem estrutura familiar e educacional. Apesar de tudo o que aconteceu, a chegada do meu neto encerrou esse ciclo. A partir dele, a história será contada de outra forma.

Qual é a importância do João W. Nery?

Eu, Jordhan, não existiria se não tivesse conhecido o João. Foi através dele e com a troca que tivemos, nós éramos muito próximos, eu ia à casa dele e nós conversávamos muito, eu fazia perguntas que um filho faz para o pai. Tive o prazer de ter isso com o João. João é fundamental. Sinto muita falta dele, me sinto órfão. Para se ter ideia, a partida do João dói mais em mim do que qualquer pessoa da minha família. Minha família já foi toda embora, mãe, pai, avó, avô. Só ficamos eu e meu irmão, que está hospitalizado há dois anos. A minha irmã caçula partiu em 2020, como vítima da covid-19. Eu lembro do João todo dia e em muitas situações me pergunto o que ele faria. O João era um cara muito sábio e visionário, ele falava muito da velhice transmasculina. Quando ele partiu, foi um pouco antes do desgoverno que se iniciou em 2019, e eu falei “o João foi sábio até na hora de se retirar de cena”. Um cara que atravessou a ditadura militar ter que passar ainda pelo desgoverno do Bolsonaro seria muito pesado. Eu senti medo de ser preso e de ser internado de novo. Passei quatro anos com muito medo. Dentro do meu trabalho, que é uma instituição extremamente preconceituosa e machista, sofri muito com os quatro anos que se seguiram. Eu pensava que o João estaria sofrendo muito mais por estar em uma idade mais avançada. Uma semana antes dele falecer, eu estive com ele. Eu, ele, Leo Peçanha e Benjamin Neves. O João falou que estava partindo e que sabia que não viveria mais durante tanto tempo porque o câncer já estava bastante avançado. Eu falei uma coisa para ele: “bota uma coisa na sua cabeça, você não vai morrer nunca, você vai se ausentar fisicamente, só morre o que a gente não lembra e não é o seu caso, João, você nunca vai morrer, a sua energia vai ganhar outra forma e você vai estar sempre presente”. Não conheço nenhum outro homem trans – ou trans homem, como ele preferia – que tenha parido tanto quanto ele, principalmente durante a geração que o conheceu e teve contato. Alguns homens trans hoje não sabem quem é o João, mas a galera da minha geração, e olha quantos nós somos, nunca vamos esquecer dele. Ele não vai morrer nunca.

Quais temas são abordados em seus livros?

No site da Editora Metanóia, ainda está disponível o primeiro livro, que é o Eu, trans – A alça da bolsa: relatos de um transexual, mas ele tem uma linguagem que não é mais utilizada e por isso estou revisando, fazendo algumas alterações e pretendo fazer o lançamento de uma nova edição usando o título Eu, trans – A alça da bolsa: relatos de um transexual 10 anos depois. Será a mesma história, mas com uma linguagem mais adequada ao que vivemos hoje. Em Missão vencer, lançado pela Editora Proverbo, falo das coisas que aconteceram comigo depois da transição. Então, Eu, trans aborda as minhas origens, que até então eu não tinha certeza de nada, e tudo o que vivi até 2013, quando conheci o João W. Nery. E Missão vencer aborda o que vivi entre 2013 e 2021. Eu acho que, mesmo passando por tantos desafios, se a gente parar para pensar, ainda resta muito motivo para a gente agradecer. Temos mais motivos para agradecer do que para reclamar. O problema é que as coisas ruins nos chamam mais atenção e isso acaba tirando o nosso foco das coisas boas. A Marcia Rachid sempre me pergunta como eu posso ter passado por tanta coisa e ainda ser grato à vida. Mas foram essas coisas que me transformaram em quem eu sou agora. Resolvi fazer o oposto de tudo o que esperavam de mim. Foram as dificuldades que me fizeram seguir em frente e me fizeram chegar aos cinquenta e sete anos. Os livros falam exatamente disso. 

Como foi o processo de se tornar guarda municipal?

Quando entrei para a guarda, eu ainda não me reconhecia como trans. Eu era diferente, sempre fui muito masculino, mas ainda não me reconhecia como trans. Na foto do meu primeiro livro, eu não tinha hormônio nem cirurgia, então sempre fui uma figura masculina. Quem me conheceu antes da transição e me vê agora diz que não mudei quase nada, além da barba e da careca. Quando entrei para a guarda, há vinte e seis anos, eu estava passando por uma das situações difíceis da minha vida. Estava morando em Nova Iguaçu (RJ), na casa de uma família que me acolheu porque eu estava sem ter onde morar. Essa família é minha amiga até hoje. Eu estava desempregado e ajudava um deles a bater uma laje. Uma pessoa passou com um jornal na mão e falou “po, Jô, abriu concurso para a guarda do Rio”. Falei para ele deixar o jornal, que depois eu dava uma olhada. Terminei de fazer as coisas e peguei o jornal para ler na parte da noite. Na época, a guarda exigia o primeiro grau de escolaridade completo e eu não tinha. Como vivi em situação de rua, eu me tornei autodidata. Geralmente, concurso público demora um pouco para chamar e eu ainda precisava fazer algumas provas para terminar o primeiro grau no supletivo. Liguei para a minha mãe para pedir o dinheiro da inscrição, que custava vinte reais, mas ela me disse que eu não tinha capacidade para ser guarda. Eu disse “ok”, depois arrumei os vinte reais, fiz a minha inscrição e comecei a estudar e a me preparar para os testes físicos porque eu era extremamente magro. Fui fazer as provas e eram vinte e dois mil e sessenta e cinco candidatos. A prova foi lá no Maracanã. Dos vinte e dois mil e sessenta e cinco candidatos, passei como quinto colocado. Dei o sangue para poder entrar. Minha mãe disse que eu não tinha capacidade, mas chamei ela para ser a minha madrinha no dia da formatura. Estou na guarda até hoje. No início, para se ter uma ideia, no questionário da guarda municipal daquela época, tinha perguntas como “você é homossexual?”, “caso sim, você tem parceiro fixo?”. Eu respondi que era homossexual e que tinha companhia fixa. Tinha um inspetor que pegava muito no meu pé e ficava me perguntando o motivo por eu não usar maquiagem como as minhas colegas. Eu tinha muito medo de responder porque eu estava no curso de formação e poderia ser desligado a qualquer momento. Depois de tanto esforço para estar lá dentro, ser desligado seria muito ruim, mas teve um dia que eu não aguentei e respondi “com todo respeito, isso tá escrito no edital?”, ele disse que não, aí eu pedi para ele parar de me encher o saco e a graça dele se encerrou aí. Foram anos bem pesados até eu me reconhecer trans. A pior coisa que existe é sofrer algum preconceito sem saber quem você é. Você fica sem saber como se defender. Foi o que aconteceu comigo. As pessoas me viam de uma maneira que eu não me via. Eu me sentia, mas não me via. Me viam muito mais masculino. Tanto é que eu tinha muito problema para usar o vestiário da guarda. Na escola também, quando eu era criança, não podia estar com as meninas porque eu era muito menino e não podia estar com os meninos porque eu não era como eles. Vivi durante muito tempo nesse não-lugar, vivi assim até meus quarenta e seis anos de idade. Quando conheci o João foi quando me situei e entendi quem eu sou, foi quando eu descobri a possibilidade de transicionar e só entendi tudo o que eu estava passando quando me reconheci trans. 

Qual é a importância de contratar suas palestras?

As palestras são a minha missão de vida. A guarda não é mais um espaço – na verdade, nunca foi – agradável para mim. De 2014 para cá ficou menos pior, mas nunca vai ser um espaço agradável e vem tomando um rumo que não tem nada a ver com o que eu tenho como ideal de vida. A gente está vendo uma movimentação para a guarda ser armada e eu sou contra. Ela saiu do viés social que tinha quando eu entrei e passou para um viés repressivo. Posso dizer, sem medo de errar, que mais ou menos noventa por cento da guarda é bolsonarista, evangélico e radical. Tem dia que eu volto de lá parecendo que estou carregando o mundo nas costas, tamanho é o peso que isso me traz. O que suaviza é fazer o trabalho que eu faço fora de lá. A gente acha que tudo já foi dito, que todo mundo entende sobre todos os assuntos, mas não é bem assim. Estou criando um curso online porque não estou dando conta de realizar todos os atendimentos pessoalmente. Uma pessoa responsável por uma escola me ligou na semana passada. Nessa escola tinha uma menina trans e o professor a chamou diversas vezes por pronomes masculinos. A menina saiu da escola e o dono veio conversar comigo, precisando de ajuda. Respondi a ele que é preciso capacitar pessoas, não tem outra maneira. A palestra é uma porta de entrada, é para chegar e apresentar a temática, mas como a gente trabalha essas situações? A palestra não dá conta. Em uma hora não dá para resolver situações como essa. É preciso fazer a manutenção dessa estrutura. O professor ficou arrasado por conta da saída da menina, a menina saiu da escola porque foi desrespeitada e o dono da escola está com receio da situação se espalhar. Então essa também é uma questão de mercado e algumas pessoas já estão entendendo isso. É um trabalho que venho fazendo há um bom tempo e é o que decidi fazer para o resto da vida. Se o universo colaborar, daqui a três anos irei me aposentar. Outra situação de acompanhamento estou fazendo com uma psicóloga de Aracaju (SE) que atende crianças e adolescentes. Ela está com uma questão com a filha, que tem doze anos e se reconhece como trans. Aí a gente consegue ver a diferença entre profissional e mãe. A mãe estava se sentindo sem saída e nós começamos a trabalhar juntos, entrei em contato com o Mães Pela Resistência da cidade dela porque também é importante ter uma rede local para apoiar. É uma coisa que me dá um prazer imenso e é o que escolhi fazer para o resto da vida. É possível me contatar através do site www.jordhanlessa.com.br, do instagram @jordhanlessa e do WhatsApp (21) 99368-0127.