Sementes crioulas no Espírito Santo: agricultoras/es cobram a retomada de políticas públicas
A partir de um profundo conhecimento adquirido por gerações, alguns agricultores e agricultoras familiares capixabas tornaram-se referência na conservação e melhoramento de sementes crioulas no estado.
A partir de um profundo conhecimento adquirido por gerações, alguns agricultores e agricultoras familiares capixabas tornaram-se referência na conservação e melhoramento de sementes crioulas no estado. Sem a utilização de nenhum agrotóxico ou insumo químico, os milhos conhecidos como “fortaleza” e “aliança” são cultivados em várias regiões e foram utilizados em políticas públicas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) – Sementes. Esta é mais uma experiência identificada pela campanha Agroecologia nas Eleições, promovida pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) em todo o país.
Desde 1993, membros da Associação de Desenvolvimento Comunitário de Fortaleza e Adjacências, no município de Muqui-ES, vêm experimentando a soberania local na produção de sementes crioulas de milho e de espécies leguminosas. Um campo comunitário no território foi o espaço escolhido para o desenvolvimento de técnicas de melhoramento participativo. O trabalho de pesquisa e produção de sementes contou com o apoio da prefeitura municipal, de organizações locais de agricultores/as familiares e de Altair Toledo Machado, da Embrapa. Esse processo se desenvolveu entre os anos 2000 e 2012 e, até hoje, tem reflexos na preservação ambiental da região e geração de renda para produtores/as.
De acordo com José Arcanjo Nunes, engenheiro agrônomo responsável à época na prefeitura, mais de 1.600 famílias foram atendidas pelo PAA-Sementes e deixaram de depender dos mercados. “As sementes foram adquiridas pela prefeitura; pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab/Ministério da Agricultura, Pesca e Abastecimento) e pelo Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), por meio do PAA-Sementes; e por agricultores familiares e produtores rurais de Minas Gerais e do Rio de Janeiro. Também serviram para pesquisas de mestrado e doutorado na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF)”, complementou. Em 2013, os agricultores chegaram a vender 15 toneladas de sementes.
“Este trabalho gerou independência e empoderamento dos agricultores em todo o processo de produção do milho de alta qualidade, o que lhes trouxe renda e contribuiu para qualidade de vida das famílias. Contribuiu nesse contexto a Lei municipal nº 515/2012, que define atividades de conservação da agrobiodiversidade e das plantas medicinais como de interesse social e estabelece medidas para sua proteção em Muqui (ES), e proíbe o cultivo e comercialização de sementes geneticamente modificadas. Parte do território do município está inserida na Unidade de Conservação Monumento Natural Serra das Torres, o que lhe confere uma área de amortecimento para impedir a contaminação das sementes”, explicou Nunes.
Muitas estratégias foram adotadas à época para impedir a contaminação transgênica dos campos de produção e melhoramento participativo da variedade “fortaleza”, como o acordo entre os próprios agricultores para o plantio de roças distanciadas em pelo menos 400 m uma da outra, ou 30 dias de diferença entre as semeaduras, para resguardar as variedades crioulas de milho. Após cinco anos de melhoramento participativo, surgiram as variedades “fortaleza” e “aliança”. Elas chegaram a alcançar uma produtividade de 9,8 ton por hectare, média muito superior aos milhos híbridos utilizados na região. Também houve o resgate de variedades crioulas de feijão (38 variedades), de baunilha e de arroz, além da valorização da criação da galinha caipira.
As primeiras compras das sementes pelo poder público foram realizadas pela prefeitura, depois pelo governo estadual e, posteriormente, pelo governo federal, por meio da Conab. A secretaria municipal de agricultura apoiou com assistência técnica, equipamentos de irrigação, bem como coleta e transporte de esterco bovino e/ou de galinhas. As sementes chegaram a ser distribuídas para 15 municípios no entorno. O milho é uma importante fonte de alimentação humana e para a criação de pequenos animais. As sementes adquiridas foram doadas em assentamentos da reforma agrária, cooperativas da agricultura familiar, em comunidades quilombolas, para o movimento de pequenos agricultores (MPA) e também para comunidades indígenas do município de Aracruz (ES).
“Este trabalho é referência para todo o estado e inspira a mobilização que vem sendo realizada por movimentos sociais e instituições governamentais no intuito de promover, ampliar e apoiar os guardiões de sementes”, afirmou a coordenadora técnica de agroecologia do Instituto Capixaba de Pesquisa, Assistência Técnica e Extensão Rural (Incaper). “Um projeto de lei está sendo discutido objetivando a preservação da agrobiodiversidade, a conservação e proteção de sementes, mudas e raças crioulas e o desenvolvimento sustentável local e regional”, acrescentou.
“Também estão sendo propostas ações de pesquisa e extensão rural em prol da conservação da agrobiodiversidade capixaba no Plano Estadual de Agroecologia e Produção Orgânica, que está sendo elaborado de forma participativa com várias instituições. Este trabalho mostra que é possível resgatar essas sementes, gerar renda e valorizar os guardiões de sementes. Trabalhos parecidos estão em andamento no estado com o Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes), o Incaper e movimentos sociais como o MPA e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). É preciso união entre poder público e sociedade civil para o resgate e valorização das sementes crioulas, que são base para uma agricultura agroecológica e para um desenvolvimento rural sustentável”, destacou.
De acordo com Antônio Renato Bettero, guardião de sementes em Muqui, atualmente, apenas seis agricultores ainda cultivam as variedades “fortaleza” e “aliança” e, desde 2015, não há mais nenhuma política pública que estimule sua preservação e produção. Devido à pressão dos mercados do café e do leite, característicos na região, e à falta de interesse das novas gerações, falta mão de obra para a conservação das sementes crioulas. Atualmente, os grãos são vendidos para os municípios de Presidente Kennedy e Cachoeiro do Itapemirim, mas só para produção de silagem para a pecuária.
“No ano passado, vendemos 600 kg de sementes para o Programa de Sustentabilidade Tupiniquim-Guarani (PSTG), da empresa Suzano Papel e Celulose S.A., instalada no município de Aracruz. Neste ano de 2020, conseguimos produzir 500 kg de sementes do milho “fortaleza” e 1 tonelada da variedade “aliança”. Como o preço do milho subiu, tem mais pessoas interessadas, mas falta mão de obra e a prefeitura não está fiscalizando a plantação e comercialização de sementes transgênicas. Temos uma lei aqui, mas não é respeitada. Depois de tantos anos de pesquisas e trabalho, está muito difícil devido à falta de interesse dos políticos”, criticou.
Mais de 30 pessoas chegaram a se envolver na produção, que chegou a 85 mil kg de sementes de milho. Desde 2015, sem acesso às políticas públicas, eles vendem no boca a boca e a poucas empresas para a alimentação do gado da região. A compra que existiu por parte da Conab, segundo alguns agricultores, acabou sendo dificultada e o preço não estava compensando devido à burocracia para acessar o programa e à logística de entrega. Mesmo com a crise ainda agravada com a pandemia, a expectativa é que, com a mudança nas gestões municipais com as eleições de 2020, a relação com os guardiões e guardiãs de sementes seja restabelecida.
Edição: Flávia Londres
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