“Sem feminismo não há agroecologia”. Entrevista com Sarah Luiza Moreira, da Articulação Nacional de Agroecologia
Pesquisa apresenta importantes políticas públicas para enfrentamento à violência contra as mulheres na região Nordeste
Pesquisa promovida pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) em todos os estados do país destaca a importância da construção de políticas públicas direcionadas à realidade das mulheres rurais. A campanha Agroecologia nas Eleições recebeu sistematizações de consultoras(es) em mais de 500 municípios. As políticas municipais direcionadas ao enfrentamento à violência contra as mulheres tiveram destaque entre as iniciativas mapeadas, sobretudo nos estados do Nordeste. Essa foi também a região que teve maior adesão à carta de compromisso com a agenda agroecológica por parte de candidatas às prefeituras e câmaras municipais.
Para tratar este assunto conversamos com Sarah Luiza Moreira, cientista social, mestra em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural e integrante do Grupo de Trabalho (GT) Mulheres e do Núcleo Executivo da ANA. Na entrevista à Ninja, ela fala sobre a dificuldade das políticas públicas de atendimento às mulheres chegarem no meio rural, mas explica que, graças à mobilização delas, estão melhorando alguns mecanismos de prevenção e combate à violência sexista. Fala ainda da tradição histórico-cultural de mobilização feminista na região, explica que essa amostra da pesquisa reflete uma realidade estrutural de violência que está em todo o país e ressalta a importância da mobilização social para essa transformação urgente e necessária.
Por que o tema da violência contra as mulheres apareceu tanto no Nordeste em uma pesquisa nacional de agroecologia?
Ao olhar a realidade do campo, das florestas e das águas é muito importante compreender que políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres também são de fortalecimento da agroecologia. Como dizemos há um bom tempo: sem feminismo não há agroecologia. É necessário considerar as necessidades, problemas e desafios vivenciados por elas. Pensar em políticas municipais de proteção das sementes, de apoio a feiras e outros canais de comercialização, no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e na Política Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) é fundamental, mas também é preciso que sejam consideradas as dificuldades específicas impostas pelo patriarcado que dificultam que as mulheres tenham autonomia sobre suas vidas, seus trabalhos e seus corpos, limitando, por exemplo, decisões sobre a produção agrícola. O âmbito da comercialização, do dinheiro, da economia, ainda é considerado masculino e é um exercício da agroecologia não apenas incluí-las neste campo, mas questionar a ideia de que só há economia quando há a mediação pelo dinheiro. É importante dar visibilidade ao que as mulheres estão produzindo e potencializar essa geração de renda monetária e não monetária, a produção de alimentos para o autoconsumo, a conservação da sociobiodiversidade. Fortalecer o trabalho das mulheres também é se posicionar firmemente no enfrentamento a todas as formas de violência que as mulheres do campo, das águas, das florestas e das cidades vivenciam diariamente.
Esse levantamento da ANA sobre políticas públicas para a agroecologia, a agricultura familiar e a segurança e soberania alimentar é um importante exercício para refletir sobre de qual agroecologia estamos falando. Reforçar neste processo a ideia de que a agroecologia não implica em olhar só para a lógica produtiva de práticas de conservação do solo, de manejo e comercialização, mas sim em considerar uma perspectiva mais sistêmica, que olhe com atenção para os sujeitos do campo, para a vida das mulheres, das juventudes e das populações negras, quilombolas e indígenas. Essa agroecologia deve considerar, inclusive, a questão cultural e aspectos relacionados à saúde, porque esses temas integram a vida no campo e devem ser objeto de um olhar mais ampliado. Queremos mostrar que fazer agroecologia é sim construir políticas de produção e comercialização, como as feiras, o PAA, o Pnae, mas também políticas para a cultura, a arte, o meio ambiente, a educação, a juventude, as mulheres.
Fizemos essa reflexão com todos os estados, mas conseguimos identificar no Nordeste políticas públicas para as mulheres rurais e de enfrentamento à violência contra as mulheres, bem como ações de fortalecimento da sua organização produtiva, de suas práticas e atividades, por exemplo, nos quintais produtivos e na comercialização nas feiras. A questão da violência é recorrente na vida de todas, o nosso exercício é considerá-la um tema da agroecologia. O GT Mulheres da ANA tem levantado essa questão, inclusive no livro Mulheres e Agroecologia: sistematizações de mulheres agricultoras, onde a violência sexista é citada como parte do cotidiano delas, seja no âmbito do trabalho, na organização comunitária ou na política. No meio rural, as mulheres sentem dificuldades ainda mais intensas para a proteção das situações de violência devido ao distanciamento e à dificuldade de acesso a equipamentos de políticas públicas.
Durante os governos progressistas, foi construída uma série de políticas públicas nacionais e de ferramentas, como o Plano Nacional de Enfrentamento Contra a Violência Contra a Mulher, o debate sobre a importância das Redes de Enfrentamento e os espaços de participacão social, como o Fórum Nacional de Enfrentamento Contra a Violência Contra as Mulheres do Campo e das Florestas. Esse processo se deu tanto pela compreensão por parte do governo acerca da necessidade dessas ações, quanto pela organização e pressão dos movimentos de mulheres e feministas, como a Marcha das Margaridas, que traz o tema da violência de forma muito concreta desde sua primeira edição, em 2000. Isto tem fortalecido os debates nos municípios sobre a importância da existência de políticas públicas nos âmbitos federal, estadual e municipal, que possam dar respostas e contribuir para a proteção das mulheres vítimas de violência.
Quais foram as maiores evidências trazidas pela pesquisa? Existem muitas leis, equipamentos, mecanismos de participação e outras iniciativas?
Percebemos que tem havido um exercício de institucionalização de instâncias de políticas públicas para mulheres dentro das prefeituras, o que significa a construção de secretarias específicas e coordenadorias. Acredito que existem bem mais experiências que as apontadas no levantamento, mas é fato que ainda é preciso ampliar as reflexões e debates sobre a importância de políticas específicas para as mulheres, especialmente às rurais. Essas políticas precisam ser pensadas em diálogo com outras, ou seja, de forma intersetorial com as de segurança pública, saúde, educação, cultura e arte, economia, como parte das ações de proteção às mulheres em situação de violência. É necessário pensar como elas serão recebidas no sistema público de saúde, por exemplo. O diálogo com secretarias da economia é necessário, porque é fundamental entender que para este enfrentamento é extremamente importante a geração de autonomia econômica para elas. Na Paraíba, por exemplo, a Secretaria de Políticas para Mulheres de Cajazeiras faz esta relação porque entende que essa não é uma questão só de polícia. Não adianta só prender quem está agredindo as mulheres, a questão é social, cultural, estrutural e precisa de respostas sistêmicas. É preciso fortalecer as práticas culturais das mulheres, envolver estruturas de saúde que as recebam e ajudem no processo de prevenção, que tem forte relação com o fortalecimento do processo organizativo delas. Quando nós da agroecologia ajudamos a organizar grupos nas comunidades também contribuímos neste enfrentamento e fortalecemos as relações de solidariedade e os processos de acolhimento.
A análise dos dados também mostra como é importante a organização da sociedade civil: onde tem movimentos de mulheres e feministas organizados, há uma pressão maior sobre o poder público para existirem instâncias institucionais de proteção às mulheres e de enfrentamento às diferentes formas de violência. Essa relação entre a sociedade e os poderes públicos pode ser um círculo virtuoso. A questão da institucionalização e das políticas integradas, que considerem o tema como sistêmico, que precisa de respostas de diferentes campos, é um diferencial. E tudo isso deve estar em diálogo com o processo organizativo delas, ajudando-as a gerar renda em suas dinâmicas produtivas, possibilitando-lhes mais autonomia e liberdade. A Patrulha Maria da Penha, por exemplo, a partir de uma política federal, chega ao campo com o intuito de ser uma polícia mais sensibilizada às realidades das mulheres rurais. Elas precisam se sentir mais acolhidas no âmbito institucional com mecanismos de proteção, mas isso só se efetiva quando há um processo organizativo que inclua espaços de troca e cuidado coletivo. Ainda é muito desafiador fazer a Lei Maria da Penha chegar de fato às comunidades, com todas as suas ferramentas, mas essas patrulhas mostram como isso pode se desenhar e ir se aprimorando.
Essa tradição histórico-cultural das mulheres em mobilizações como a Marcha das Margaridas tem relação com o aumento de políticas de enfrentamento à violência no Nordeste?
Não é à toa que tenham se destacado na pesquisa experiências de mecanismos para o enfrentamento à violência contra as mulheres no Nordeste. Isso pode ser reflexo de um histórico processo de organização política, onde essas questões vêm sendo pautadas para a sociedade, tirando o debate do âmbito privado, mostrando que a situação de violência não é uma responsabilidade ou culpa das próprias mulheres. As organizações sociais têm feito esse debate a partir do sindicalismo, da agroecologia, dos movimentos feministas, que são muito fortes no Nordeste. A própria Marcha das Margaridas tem a Margarida Alves, uma paraibana, como referência. Então essas políticas são um reflexo deste processo e precisam ser melhoradas a partir deste âmbito da organização social e política. É interessante pensar em estados onde isso não aparece tanto, para ver em que medida a falta de organização e de debate coletivo compromete a proposição de políticas públicas. E por isso é importante difundir a ideia de que esse enfrentamento é também uma política agroecológica.
É possível fazer um retrato da diversidade desses movimentos, como as quebradeiras de coco babaçu e tantas outras manifestações?
O Nordeste tem exemplos bem marcantes de organizações das mulheres, o Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB) é uma grande referência de luta política e de resistência em defesa da sociobiodiversidade. O Movimento da Mulher Trabalhadora Rural do Nordeste (MMTR-NE) é outro processo de mobilização regional muito atuante. Esses movimentos são demonstrações de força das mulheres do Nordeste, assim como movimentos feministas como a Marcha Mundial das Mulheres, que fazem um forte diálogo envolvendo os temas do feminismo, da agroecologia e da soberania e segurança alimentar. Também é importante ressaltar a existência de serviços de Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater) feministas, como os que realizam a da Casa da Mulher do Nordeste, em Pernambuco, e o Centro Feminista 8 de Março, no Rio Grande do Norte. Essas organizações têm um olhar diferenciado sobre como trabalhar com mulheres rurais e sobre as suas lógicas de organização e produção para a autonomia, a liberdade e a igualdade, considerando inclusive a preservação ambiental da Caatinga e a convivência com o semiárido. Essas organizações, junto a outras que trabalham com assistência técnica mista com a perspectiva de gênero e/ou feminista, como o Esplar e o Cetra, no Ceará, a AS-PTA, na Paraíba, e o Sasop, na Bahia, formam a Rede Agroecologia e Feminsmo no Nordeste, que reflete e constrói estratégias de ação. Uma atualização da Campanha Pela Justa Divisão do Trabalho Doméstico tem pautado o tema da violência contra as mulheres através de diferentes materiais, como cards, vídeos, zap novelas, especialmente no contexto da pandemia, a partir do lema “Ficar em casa é questão de saúde, dividir tarefas e viver sem violência também”. São fortes e diferentes os processos organizativos que têm relação com a existência exemplar de políticas que dão respostas às violências contra as mulheres do campo, das águas e das florestas.
Quantas mulheres candidatas assinaram a carta da ANA de compromisso com a agroecologia e quantas destas foram eleitas nestas eleições?
Teve uma quantidade expressiva de mulheres, quase 500 candidatas a vereadoras e prefeitas, dentre o total de 1.238 candidatas(os) que assinaram a carta-compromisso. O Nordeste foi a região com maior incidência, chegando a 171 mulheres pleiteando um cargo legislativo ou no executivo. Ao todo, 70 foram eleitas, sendo que, destas, 26 são do Nordeste. Esse trabalho de levantamento das políticas públicas municipais foi um aprendizado grande, assim como a ação posterior de construção, apresentação e assinatura da carta pelas candidaturas no processo eleitoral. Conseguimos confirmar que as mulheres estão muito organizadas no debate da agroecologia, e que esse tem sido um campo muito forte, tanto para fazer com que agroecologia de fato se concretize na realidade do campo e das cidades, quanto para politizar o debate para além dessa reflexão meramente produtiva.
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