“Se essa casa aprovar esse projeto, muito sangue vai ser derramado”
Comitiva de mulheres que tiveram seus filhos mortos pelo Estado entregam carta a Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, contra o projeto anticrime.
Em reunião com o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, mães e irmãos de pessoas que morreram por tiros da polícia em comunidades de diversas cidades brasileiras fizeram um apelo contra a excludente de ilicitude e o pacote anticrime, apresentada pelo ministro da Justiça Sérgio Moro, a chamada “Licença para Matar”.
“Viemos pedir de coração para que nosso clamor seja atendido. Nossos filhos não vão voltar, mas não queremos que outras mães sejam adoecidas”, disse Ana Paula Oliveira, mãe de Johnatha, morto aos 19 anos em Manguinhos, no Rio de Janeiro. Uma carta escrita pelos familiares foi entregue às mãos de Rodrigo Maia por Rute Fiuza, cujo filho morto na Bahia faria hoje 21 anos.
Desde que seus filhos morreram nas mãos do Estado, familiares têm se organizado em rede não somente para defender políticas eficazes de combate à violência e por justiça, mas para dar acolhimento a outras mães que têm perdido seus filhos nas comunidades por embates da polícia e outros agentes do Estado. Em maio, a Rede Nacional de Mães e Familiares de Vítimas do Terrorismo do Estado organiza seu encontro nacional para fortalecer a luta contra a “licença para matar”.
“O porte de arma vai ferir de morte o nosso país”, disse o pesquisador Antonio Rangel Banderas, autor do livro Armas Para Quê? “O Brasil vai igualar aos EUA, que tem a média de um massacre por mês”.
Rodrigo Maia reforçou a necessidade de haver políticas que combata o confronto de policiais nas favelas. Ele disse haver a necessidade de um “ponto de equilíbrio” no diálogo com os parlamentares.
Leia abaixo a carta na íntegra:
Nesse dia 8 de outubro, Davi Fiúza, filho de Rute Fiúza, da Bahia, completaria 21 anos. Em vez de comemorar seu aniversário, Rute luta há cinco anos para encontrar os restos mortais de seu filho, torturado e morto por policiais militares de Salvador, e vem hoje ao Congresso, ao lado de outras mães da Rede Nacional de Mães e Familiares de Vítimas do Terrorismo do Estado, para dizer NÃO à Licença Pra Matar, ao PL 7883 e ao Pacote Anticrime do Ministro Sergio Moro.
Os pais da menina Ágatha, de 8 anos, assassinada pela polícia há duas semanas, no Complexo do Alemão, estavam de passagens compradas para vir hoje ao Congresso, mas não tiveram condições físicas nem psíquicas de viajar, tamanha dor e luto pelo qual estão passando.
Para nós, mães e familiares de vítimas letais da polícia, é inconcebível a proposta do Ministro Sérgio Moro (PL 882) e do PL 7883 de conceder Licença Para Matar aos policiais, pois eles já tem cometido atrocidades e assassinado milhares de pessoas, sem que os crimes sequer sejam investigados. Ano passado, o Brasil teve mais de 6 mil homicídios praticados pelas polícias. Em 2019, no Rio de Janeiro, foram 1249 assassinatos em nome da lei, de janeiro a agosto, por uma política de segurança pública pautada pelo uso da força e pela desumanização dos nossos jovens negros, pobres, moradores de favelas.
Na prática, as polícias já tem tido licença pra matar. As pesquisas mostram que 98% dos casos de homicídios praticados pelas polícias são arquivados sem esclarecimento da dinâmica das mortes. Para piorar, os novos governos não só incitam a violência policial, como comemoram as mortes publicamente. No Rio, Witzel promove operações violentas com uso do helicóptero aéreo nas favelas e deixou de incluir os homicídios pela polícia na meta de redução da letalidade violenta. Na Baixada Fluminense, aumentaram os desaparecimentos forçados, assim como no Nordeste.
A legítima defesa e a excludente de ilicitude já estão previstas no Código Penal e não precisam ser modificadas. Mudar os artigos 23 e 25 do Código Penal promoveria ainda mais o uso abusivo da força letal pelas polícias, gerando mais assassinatos em suposta legítima defesa, ou com a desculpa de “medo, surpresa ou violenta emoção”.
O GT Penal da Câmara se debruçou sobre o Pacote Anticrime nos últimos meses e rechaçou a Licença pra Matar, derrubando as proposta inicial de Moro. Exigimos que os deputados mantenham o texto votado no GT, vetando a Licença Pra Matar. Exigimos também que os deputados votem contra o PL 7883, outra tentativa de ampliar a excludente de ilicitude.
Enquanto os senhores sentam em seus gabinetes confortavelmente, nós vivemos ameaçadas, nos escondemos dos tiros da polícia, helicópteros e caveirões e escutamos o choro de novas mães. A mesma bala do Estado que matou nossos filhos, nos mata a cada dia quando assistimos a novas mortes, revivendo a imensa dor da perda dos nossos filhos.
Por isso, exigimos que, em vez de darem Licença Pra Matar, aprovem leis que previnam novos assassinatos e promovam a reparação às famílias que perderam seus filhos pelas mãos do Estado. Pedimos, assim:
– Não aprovação do PL 882/2019, o Pacote Anticrime do Moro, que promove a violência de Estado e o superencarceramento;
– Não aprovação do PL 7883, bem como de nenhum projeto que vise a dar Licença pra Matar às polícias;
– Projeto de Lei para a redução da letalidade policial;
– Criação de uma Política Nacional de Reparação aos Familiares de Vítimas da Violência de Estado no Brasil, visando a reparação psíquica e social dos familiares
– Proposta Legislativa para a criação da Semana Nacional em Memória das Vítimas do Estado Brasileiro, de 12 a 19 de Maio, nos moldes das leis 7637/2017, do RJ, e 15501/2014, de SP;
– Criação do Fundo Nacional de Assistência às Vítimas de Crimes Violentos, conforme o Projeto de Lei 3503/04, na Câmara Federal;
– Legislação que impeça o uso ilegal do helicóptero aéreo como plataforma de tiros pelas polícias;
– Projeto de Lei para que as investigações dos homicídios praticados pelas polícias sejam realizadas com independência, a partir de grupos especializados do Ministério Público;
– Lei que conceda transparência e direito de acesso à informação das mães às investigações sobre os homicídios de seus filhos.
Rede Nacional de Mães e Familiares de Vítimas do Terrorismo do Estado
Presentes na audiência:
Ana Paula Oliveira, mãe de Johnatha, morto aos 19 anos – Mães de Manguinhos
Bruna Silva, Mãe de Marcos Vinícius, morto as 13 anos – Mães da Maré
Edna Carla, mãe de Alef, morto aos 17 anos – Mães do Ceará
Francilene Gomes, irmã de Paulo, morto aos 23 anos – Movimento Mães de Maio
Joseane Martins, mãe de Daniel, morto aos 21 anos – Rede de Mães de Familiares da Baixada Fluminense
Luciano Norberto, irmão de Josenildo, morto aos 42 anos – Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência
Rute Fiúza, mãe de Davi Fiúza, morto aos 16 anos – Mães da Bahia
Nagida Gomes, mãe de Artur Teixeira – Mães do Xingu
Assinam a carta:
AMAFAVV / ES
AMPARAR
Associação de Familiares de Pessoas Privadas de Liberdade MG
Frente Estadual pelo Desencarceramento RJ
Instituto Memória e Resistência
Mães de Maio do Cerrado
Mães de Maio da Leste
Mães de Manguinhos
Mães do Cárcere / CE
Mães do Curió
Mães em Luto da Leste
Mães Mogianas
Movimento Independente Mães de Maio
Movimento Moleque
Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência
Rede de Mães e Familiares de Vítimas da Violência de Estado na Baixada
Vozes do Socioeducativo e prisional / CE
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