Se acabó: o grito de libertação das jogadoras da Espanha após o caso Luis Rubiales e anos de abuso
Crise é instaurada após presidente da Federação Espanhola de Futebol beijar a força a jogadora Jennifer Hermoso
Por Mariana Walsh e Larissa Breder
No dia 20 de agosto de 2023, o futebol feminino viveu o momento mais grandioso da sua história, com o fim de mais uma edição da Copa do Mundo marcada por diversos recordes e a seleção espanhola se consagrando como campeã. Era o momento delas, mas isso lhes foi roubado. Luis Rubiales, então presidente da Federação Espanhola de Futebol (RFEF), ofuscou o que era para ser a celebração memorável de grandes feitos ao beijar a jogadora Jennifer Hermoso, sem consentimento, durante a cerimônia de premiação do mundial.
Por muitos anos e de diversas formas, as jogadoras espanholas precisaram lidar com abusos por parte de homens em posições de poder dentro de sua federação. Esse não foi um episódio isolado e situações envolvendo Ignacio Quereda e Jorge Vilda, respectivamente ex e atual técnico da seleção, já foram denunciadas antes.
Os anos de abuso de Ignacio Quereda
Antes de Jorge Vilda assumir a seleção feminina, Ignacio Quereda foi o comandante da equipe por 27 anos. Posteriormente a sua saída, denúncias de abuso moral e psicológicos cometidos por ele vieram a tona em testemunhos recolhidos no livro “No las llames chicas, llámalas futbolistas” (em tradução livre: “Não as chamem de garotas, chamem-lhes futebolistas”), da jornalista Danae Boronat, e no documentário “Romper el silencio: la lucha de las futbolistas de la selección” (em tradução livre: “Quebrando o silêncio: a luta das jogadoras de futebol da seleção nacional”).
Os relatos expuseram o ambiente tóxico promovido pelo ex-técnico durante anos dentro da seleção feminina. Vero Boquete, ex-capitã da seleção espanhola, relembra que frases como “Precisa é de um bom macho!” eram constantemente proferidas pelo treinador. Durante todos os anos em que Quereda comandou a seleção espanhola várias queixas foram feitas, mas nenhuma surtiu efeito, como explicou Pilar Vargas, que fez parte de um grupo de jogadoras que escreveu uma carta à RFEF, em 1996, acusando os abusos.
“Tentamos três ou quatro vezes mudar as coisas, mas não conseguimos. Dizia que as jogadoras estavam gordas, insultava-as… Nós o denunciamos, mas não tivemos apoio. Era um calvário ir à seleção” – recorda a antiga jogadora no documentário.
Anos depois, em 2015, Quereda acabou renunciando ao cargo após um comunicado das atletas denunciando a má preparação feita para a Copa do Mundo Feminina no Canadá, na qual a Espanha não conseguiu passar pela fase de grupos.
A era Vilda e a carta de dispensa das 15
Para substituir Quereda, Jorge Vilda foi anunciado como o novo técnico. Assim, esperava-se que muitas coisas mudassem, mas não foi exatamente esse o rumo que se tomou. A ex-atacante Natalia Pablos relatou em Romper el silencio, que apesar do “trato humano ser diferente”, houve represália. Ela e outras jogadoras, com Vero Boquete, nunca mais foram chamadas para vestir a camisa da seleção.
Em setembro de 2022, 15 atletas convocadas pediram dispensa alegando questões de saúde mental. Antes disso, algumas jogadoras já haviam solicitado à RFEF que ocorressem mudanças estruturais, pois, segundo elas, a metodologia de trabalho aplicada era fraca e os treinos defasados. Porém, Rubiales, presidente da instituição, se recusou a demitir o técnico. Dessas 15, apenas três voltaram a ser convocadas e grandes nomes do futebol espanhol como Mapi Leon e Patri Guijarro continuam afastadas da seleção.
O beijo forçado de Luis Rubiales
Mesmo com diversos problemas internos, a seleção da Espanha se consagrou campeã da Copa do Mundo de 2023. Porém, a conquista foi manchada por cenas de um comportamento deplorável do presidente da RFEF. Durante a cerimônia de premiação, Rubiales foi flagrado beijando a jogadora Jennifer Hermoso sem consentimento. Logo, o acontecimento gerou revolta pelo mundo.
Poucas horas depois, a Hermoso demonstrou seu descontentamento com o episódio em uma live em seu perfil do Instagram. Mas, em seguida, aparentemente teria voltado atrás. Em nota divulgada pela RFEF em nome da atacante, foi dito que o acontecimento teria sido ”um gesto mútuo totalmente espontâneo pela alegria imensa de ganhar um Mundial”. Entretanto, segundo o portal de notícias Relevo, a declaração divulgada foi escrita pela federação na tentativa de amenizar a situação.
No dia seguinte, após grande repercussão negativa, o presidente gravou um vídeo se desculpando pelo ocorrido. E se a ideia era aliviar a pressão sob Rubiales, o resultado foi contrário, pois cada vez mais se falava sobre uma possível renúncia do mandatário. Porém, em assembleia geral extraordinária convocada pela federação para discutir os acontecimentos, ele declarou que não deixaria o cargo e que por culpa de um “flaso feminismo” estaria sofrendo um “assassinato social”.
Seu discurso foi extremamente mal visto pelas 23 campeãs do mundo, que prontamente vieram às redes sociais para criticá-lo e apoiar Hermoso. Posteriormente, em um comunicado divulgado pelo sindicato FUTPRO e assinado por 81 jogadoras espanholas, foi anunciado um boicote a futuras convocações no caso da permanência dos atuais dirigentes da federação do país:
“Depois de todo o acontecido durante a Copa do Mundo Feminina, queremos manifestar que todas as jogadoras que assinam o presente comunicado não voltarão a uma convocação da seleção se continuarem os atuais dirigentes.”
Já Hermoso, divulgou uma declaração em suas redes sociais reafirmando que o beijo não foi consentido e que não iria tolerar esse tipo de comportamento.
“Sinto necessidade de denunciar este fato por considerar que nenhuma pessoa, em qualquer área laboral, desportiva ou social deve ser vítima deste tipo de comportamento não consensual”
A RFEF Contra o Mundo: Conflito com FIFA, governo espanhol, atletas e seus próprios dirigentes
Em meio aos acontecimentos, o Conselho Superior do Esporte (CSD), órgão ligado ao Ministério da Cultura e Esporte da Espanha, apresentou uma denúncia contra o mandatário. O governo espanhol também fez um pedido formal ao Tribunal Administrativo do Esporte (TAD) da Espanha para suspender o presidente. Já a FIFA, abriu um inquérito e suspendeu Rubiales provisóriamente por 90 dias, o que acarretou em seu afastamento do cargo de presidente da Federação Espanhola de Futebol.
Na tentativa de contornar a suspensão, a RFEF reivindicou sua condição de instituição privada responsável pela gestão do futebol espanhol, argumentando por sua autonomia. Alegou-se, portanto, que a suspensão do presidente Luis Rubiales constitui uma intromissão de terceiros, e pediram a exclusão da federação da UEFA. Essa postura, entretanto, poderia acarretar na exclusão dos clubes espanhois, tanto masculinos quanto femininos, de competições europeias de renome, como a Liga dos Campeões e a Liga Europa.
Além disso, em um desdobramento surpreendente, a federação também chegou a anunciar sua intenção de desafiar legalmente Hermoso, acusando-a de declarações falsas sobre a consensualidade do beijo. Essa atitude adicionou um novo elemento de complexidade à saga em curso. Posteriormente, 11 membros do comitê técnico da seleção feminina entregaram suas renúncias, divulgando um comunicado condenando as “atitudes e declarações inaceitáveis do presidente”. Essa saída em massa torna o técnico Jorge Vilda como o único membro ativo da comissão campeã mundial.
A indignação diante do contexto tem gerado manifestações contra Luis Rubiales e a federação espanhola, abrangendo desde partidas na National Women’s Soccer League (NWSL) até jogos na liga masculina espanhola. Artistas, atletas de outras modalidades e políticos também se manifestaram. A repercussão desse conflito tem ecoado de forma significativa pelo futebol internacional.
A situação ainda está longe de ter um desfecho. Após reunião extraordinária realizada pela RFEF nesta segunda-feira (28/08), os diretores regionais da instituição pediram a demissão imediata de Rubiales. Eles ainda solicitaram a Pedro Rocha, presidente interino, que retire imediatamente a carta em nome da federação em que solicitam a retirada da própria instituição de competições continentais enviada para a UEFA. Além disso, parabenizaram a seleção feminina e todas as jogadoras que ajudaram a desenvolver o futebol feminino espanhol ao longo dos anos.
Conforme a crise se desenrola, o mundo observa atentamente cada novo capítulo dessa história. Ao mesmo tempo que se cobra ativamente uma reformulação no cenário do futebol feminino espanhol e internacional. Por todas e pelo respeito que nunca lhes foi dado, todas gritam em alto e bom tom que “Se acabó!”. Não é apenas sobre futebol.
Texto produzido em cobertura colaborativa da NINJA Esporte Clube