
Reflexões sobre ‘Morte e Vida Madalena’, de Guto Parente, e o espaço da comédia nos festivais
Diretor e produtora Ticiana Augusto Lima falam sobre humor, drama e o fortalecimento do cinema cearense em papo no Festival de Brasília 2025
Por Daniele Agapito
Conversei, finalmente, com Guto Parente, um dos diretores de Inferninho, codirigido por Pedro Diógenes, aquele filme que viralizou na internet graças ao monólogo do coelho “a vida é tua até o fim…”. Conheci a obra por indicação de um dos maiores poetas do Recife, Igor de Carvalho, que me escreveu em caixa alta: “você precisa ver esse filme, é a tua cara”. Ele tinha razão. A pesquisa de Guto, que mistura comédia, humanidade e filosofia de um jeito nada pastel, ganhou meu coração de cinéfila.
Agora ele está aqui, em Brasília. Depois de tanta propaganda, fiz questão de puxar Guto de canto para uma conversa sobre seu novo longa, Morte e Vida Madalena, que compete no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. O filme é protagonizado por uma mulher trans no papel de uma produtora de cinema às voltas com um turbilhão de acontecimentos: a morte recente do pai, uma gravidez de oito meses e a produção de uma ficção científica B completamente caótica.
O público brasiliense abraçou o filme, nos corredores e na área de convivência do festival só se ouvem elogios. E há um certo alívio geral: é um filme que nos autoriza rir. Mas não se engane: Madalena está longe de ser superficial.
“Sonhei a vida inteira em ser engraçado”, disse Guto no palco. E acho que ele realizou o sonho. Na história do cinema que já teve Chaplin, com seu Carlitos convidando à crítica social através da comédia, fiquei pensando: qual é o espaço do humor nos festivais hoje? Porque tão preterido?
E foi sobre isso, humor, dor, Ceará e o alvará para rir, que conversamos. A entrevista aconteceu ao redor de uma mesa perto dos banheiros públicos da área externa do festival ( lugar mais silencioso que encontramos). Guto se apoiou no canto da mesa e quase virou a tampa — sem querer, claro. Começamos bem.
Cine Ninja: Percebo um hibridismo nos teus filmes com outros gêneros cinematográficos, mas você circula por festivais de cinema com um ingrediente principal , que é o humor. Como é estar em espaços que costumam premiar ou enaltecer filmes que convidam mais a “lágrima” do que o “riso”?
Guto Parente: Eu acho interessante pensar a questão dos gêneros. Por exemplo, a comédia: como conseguimos quebrar certos estigmas e a ideia engavetada do que seria “comédia”? A comédia pode ser muitas coisas… existem várias vertentes, várias formas de fazer humor.
Para mim, afirmar “estou fazendo comédia”, mesmo que seja comédia dramática, faz sentido, porque o humor no filme nasce do drama. Não é um tipo de comédia em que estamos rindo das personagens, de um trejeito ou de um modo de falar. É uma comédia toda construída no absurdo das situações, no timing dos diálogos, enquanto as personagens vivem situações dramáticas.
É uma aposta. Eu acredito muito no humor como ferramenta para acessar lugares profundos também; muitas vezes é até mais eficaz para plantar uma semente de dúvida ou reflexão.
Dentro do circuito existe uma barreira a se quebrar. Senti isso na estreia do filme — que foi em Marselha, na França, em um festival fortemente autoral — eles, ao programarem Morte Vida Madalena, queriam exatamente tensionar isso: colocar uma comédia de autor que gera um curto-circuito dentro da programação.
CN: Aproveitando, qual é o seu filme de cabeceira?
GP: Acho que é O Inferninho. Para mim, O Inferninho foi um acontecimento — um encontro em circunstâncias certas: todo mundo no lugar certo, na hora certa. É um encontro muito bonito que reverbera até hoje, sete anos depois do lançamento [estreou em 2018]. Ainda encontro pessoas que me contam o quanto o filme é especial para elas e o guardam no coração. Tive a oportunidade de rever agora depois de muito tempo, numa sessão em um bar em Juazeiro do Norte, no Ceará, foi uma experiência linda e me apaixonei ainda mais pelo filme.
CN: O monólogo do Coelho viralizou nas redes sociais!
GP: Sim, foi algo que tomou proporções grandes. Eu acho isso muito massa.
CN: Voltando aqui. O filme “Morte e Vida Madalena” foi escrito para ser protagonizado por uma pessoa trans?
GP: Eu escrevi sem essa ideia a priori. Pensei nessa personagem, numa produtora, sem rosto ou corpo definidos: de certa forma ela é mistura de várias produtoras que conheço. A personagem também foi muito inspirada em uma produtora com quem trabalho, que é minha parceira desde o início; ela produziu meus filmes e é uma parceira criativa muito forte.
Eu vinha observando o trabalho e os perrengues da produção há muito tempo e queria compartilhar esse modo de fazer cinema a partir da perspectiva da produção, que é algo raro. Por isso escrevi o roteiro pensando na personagem, não em uma atriz específica.
Na hora de fechar o elenco, o nome da Noá Bonoba surgiu naturalmente. Já havia uma relação de admiração e de trabalhos anteriores entre nós. Ela já tinha participado de outro longa da produtora como figurante e fez também trabalho como preparadora de elenco; tem uma cena que muita gente lembra… A cena da delegada, que é super engraçada. Eu queria fazer um filme em que ela fosse protagonista, e quando o roteiro se fechou fiz questão de convidá-la.
CN: E como anda a cena do cinema no Ceará?
GP: O Ceará vem passando por um momento de crescimento e fortalecimento cultural e artístico muito forte nas últimas décadas. Faço cinema há cerca de 20 anos e quando comecei não existia cursos de formação por aqui. Entrei na primeira turma da escola de audiovisual da Vila das Artes [um curso público da prefeitura de Fortaleza] que existe até hoje, está abrindo a oitava turma, e que foi revolucionária para a cidade. Acompanhei também a abertura de cursos na UFC e da UNIFOR e outras iniciativas.
Esse investimento em formação tem reverberado e fortalecido a cena. Eu acho que a cena do Ceará acontece muito por conta de uma demanda que vem sendo ‘um pouco atendida’. Digo ‘um pouco’ porque ainda falta muito… Acho que mais gente precisa ter a chance de fazer cinema; o espaço ainda é reduzido e a luta é ampliar esse espaço para termos mais pluralidade de realizadores e realizadoras. Vejo isso acontecendo. Agora, isso depende tanto do desejo das pessoas de fazer cinema, quanto de vontade política.
Tivemos políticas de descentralização que foram implementadas na época do Governo Dilma, e hoje o Nordeste consegue acessar recursos que não acessava antes; e mostrando uma força da porra na produção. A gente tem dado o recado, não só o Nordeste, mas todas as regiões fora do centro econômico (Rio e São Paulo) vêm ganhando mais visibilidade e mostrando um cinema mais plural e diversificado.
CN: Uma observação ou um elogio: assisti ao filme e achei o elenco muito afiado, não vejo cenas gratuitas; mesmo nos momentos sem diálogo os atores estão inteiros, reagindo, contando a história. Como você trabalha com atores? Sei que alguns diretores têm medo…
GP: Sou apaixonado pelo trabalho com o elenco, embora já tenha tido medo por muito tempo. Entendo quem tem medo: se você está inseguro e não sabe o que busca, trabalhar com elenco pode ser difícil. Para mim, cada ator e atriz precisa ser dirigido de uma forma específica. É um trabalho de relação humana.
É preciso conversar, sintonizar; não existe uma única maneira de lidar com todas as pessoas. Envolve energia, olhar no olho, aposta, intuição… Sentir que aquela pessoa é a certa para tal personagem e fazer a aposta. Muitas vezes convidei pessoas que não são atores profissionais, que são realizadores, e isso funciona muito bem (por exemplo, temos o Marcus Curvelo, da Bahia, e a Noá Bonoba, que é realizadora de cinema e está fazendo o primeiro longa dela como protagonista).
Gosto muito de ensaiar, trabalhar o texto, passar tempo em pré-produção improvisando para descobrir o “tempero” das cenas — como as palavras saem na voz de cada um, como o corpo reage — e observar com cuidado para, na hora das filmagens, extrair o melhor de cada pessoa.
Preciso abrir um parêntese para elogiar o trabalho de Tavinho Teixeira. À primeira vista, juro que achei que fosse o Supla [cabelos platinados, um lookinho punk tropical] mas não, era ele mesmo, no papel de Oswaldo, o ator que dá vida ao Zion. Meu Deus, como ele é bom.
Na sequência, Guto me apresenta sua produtora e braço direito, Ticiana Augusto Lima. Pois é, a própria, umas das inspirações para o papel fictício de Noá Bonoba. Ironicamente, acabou de ser mãe e circula pelo festival com o bebê de tiracolo. Enquanto converso com Ticiana, Guto fica fazendo mugangas para distrair a nenê.
CN: Qual o desafio de fazer uma comédia circular em festivais, que costumam selecionar obras dramáticas?
Ticiana Augusto Lima: Sou produtora e montadora do filme. Nesse trabalho como produtora criativa, junto com o Guto e a Thaís, buscamos entender o melhor fluxo do filme, o filme que queremos entregar. O humor é algo delicado… às vezes funciona perfeitamente em uma cena e, em outra, pode não ter o mesmo efeito. Então fizemos muitos ajustes para encontrar o tom ideal.
Quando chegamos ao filme que queríamos, pensamos: “Como fazer esse humor chegar aos festivais, que nem sempre selecionam esse tipo de obra?” Acredito que, quando o filme está realmente pronto — depois de vermos 20, 40 vezes e lapidarmos —, começamos a mostrar para pessoas próximas, mandar para festivais e observar o retorno.
Participamos, por exemplo, de Tiradentes, onde exibimos para parte da equipe e para pessoas que não sabiam nada do filme. Foi importante para entendermos o lugar do riso, o que funcionava e o que não funcionava, e fazer ajustes finos.
Para mim, o principal é que essa defesa do filme vem do corpo dele mesmo — de como o filme se articula internamente —, mais do que de qualquer negociação externa. No fim, a curadoria de festivais também depende da safra de filmes de cada ano…
CN: Me corrija se eu estiver errada, mas o Guto comentou na coletiva que você é a primeira pessoa a ler os roteiros dele, não é? Como você reagiu ao ler Morte e Vida Madalena?
TAL: Na verdade, eu colaboro no roteiro, então não recebo ele inteiro de uma vez. O Guto me enviou uma sinopse de cinco linhas com a ideia inicial. Quando li, pensei: “Nossa, vamos fazer esse filme.” Eu entendi a potência da ideia ali mesmo.
Depois começa o longo caminho de construir o roteiro: apresentar os personagens, as circunstâncias, definir quais piadas queremos bancar, como costurar o drama com o humor. Vou colaborando ao longo do processo, enquanto o Guto escreve tudo. Também contribuo no papel de produtora, pensando onde o filme vai se passar, por quais imagens e cenários ele transita.
Temos uma parceria de mais de 15 anos, e esse histórico ajuda muito a entender o que o filme precisa.
CN: E no meio disso tudo você teve um bebê!
TAL: Sim. Terminei o filme e, poucos dias depois, descobri que estava grávida. É curioso como fazer um filme mexe com coisas profundas, quase rituais. Durante a montagem, minha filha já estava comigo, reagindo a algumas cenas ainda na barriga!
Finalizamos e mixamos o filme em dezembro, e ela nasceu no dia 1º de janeiro. Foi literalmente um processo de gestação junto com o filme.
CN: Para finalizar: deixa um recado para quem está começando a produzir, especialmente fora do eixo [SP, RJ]?
TAL: Acredito que o mais importante é confiar no que você está fazendo. O meu termômetro é sempre a minha própria vontade, como as ideias vibram em mim. Se você acredita na proposta, siga acreditando, isso é o que guia o processo.