O projeto de lei conhecido como o PL das Saidinhas (PL n° 2253/2022) foi sancionado nesta quinta-feira (11/04), com veto parcial do Presidente Lula. O veto presidencial ficou restrito à parte que impediria as pessoas privadas de liberdade de deixar o estabelecimento prisional para visitas familiares, sob o argumento de que a privação do convívio familiar é inconstitucional.

Ainda que o veto possa ser comemorado por  rejeitar a exclusão total do direito, é preciso atentar às movimentações do Congresso Nacional, que agora recebe novamente o texto, como também às restrições que a lei ainda impõe sobre o direito de pessoas presas, seja por restrições impostas às próprias saidinhas, reduzindo o número de pessoas que poderão acessá-las, seja por outras disposições que vieram somadas ao texto: a ampliação do monitoramento eletrônico e a vinculação a progressão de qualquer regime à realização de exame criminológico.

De modo geral, dentre os impactos da aprovação destas medidas sobre a população privada de liberdade no país há consequências ainda mais cruéis impostas a uma parcela da população que pouco foi citada, ou mesmo lembrada, ao longo dos poucos meses de debate sobre o projeto de lei: as mulheres, pessoas LGBTQIAPN+, migrantes, indígenas e quilombolas. Tais impactos extrapolam o âmbito individual e alcançam não apenas suas vidas, mas toda uma rede familiar, comunitária, econômica e social

Destacamos aqui os 3 objetos de mudança da lei: saída temporária, exame criminológico e monitoramento eletrônico, sob a perspectiva das mulheres privadas de liberdade, suas redes familiares e comunitárias.

Sobre a saída temporária

A população carcerária feminina brasileira já é a terceira maior do mundo. Dados estatísticos e relatos cotidianos de mulheres no cárcere e de seus familiares nos contam que são elas, na maioria das vezes, as chefes de suas famílias e únicas responsáveis pelo sustento financeiro de suas casas e pelas tarefas de cuidado com seus familiares. Quando uma mulher é presa, há uma sobrecarga sobre as funções de cuidado e de sobrevivência econômica que se impõe, geralmente, a outras mulheres de sua rede, como mães, avós e filhas, que passam a ser responsáveis pelas tarefas de cuidado e pelo sustento financeiro de suas famílias. Desse modo, o encarceramento extrapola os limites da individualização da pena e dos muros da prisão ao agravar profundamente as vulnerabilidades sociais e econômicas já vivenciadas por essas mulheres e pelas pessoas que delas dependem.

Conjuntamente, 74% das mulheres presas são mães, e o afastamento destas mulheres de seus filhos viola o direito ao exercício da maternidade e o direito de crianças e adolescentes à convivência familiar e comunitária, previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) como direito fundamental. Decisões judiciais e dispositivos no Código de Processo Penal já preveem, por exemplo, medidas que permitam a prisão domiciliar para mulheres grávidas, lactantes e responsáveis por crianças de até 12 anos exatamente por reconhecer a relação e convivência familiar como essencial para o desenvolvimento integral das crianças e da primeira infância. Desse modo, a extinção da saída temporária de mulheres vai na contramão dos direitos que devem ser assegurados a elas e a seus filhos e filhas.

Sobre o exame criminológico

Quando falamos de encarceramento de mulheres e mães, o contexto de violações no sistema prisional brasileiro ganha outros elementos, visto que há uma negligência em relação à saúde e ao bem estar das mulheres privadas de liberdade. De um modo geral observa-se nas instituições prisionais a ausência de uma equipe de saúde, como ginecologistas e pediatras, bem como a falta de absorventes, papel higiênico e remédios. Por outro lado, sobram relatos de abusos sexuais, violência obstétrica e problemas de saúde gerados pela falta de higiene. Esse é mais um reflexo da desigualdade de gênero que poderá ser aprofundada com a imposição de realização do exame criminológico para progressão de regime.

A exigência do exame criminológico como condicionante para a progressão de regime viola não somente dispositivo considerado inconstitucional pela Lei de Execução Penal (LEP), mas também a Súmula Vinculante nº 26 do Supremo Tribunal Federal (STF), que estabeleceu que a solicitação do exame criminológico não pode ser requerida de maneira indiscriminada, só podendo ser requerida em situações excepcionais e mediante justificativa fundamentada.

Além disso, o PL, quando impôs a exigência do exame criminológico, deveria ter exposto uma grave falha do sistema de justiça: a lentidão na distribuição de suas decisões. É frequente encontrar casos em que as processadas são sujeitadas à prisão provisória por um longo período enquanto aguardam o julgamento ou, quando condenadas, continuam cumprindo a pena em um regime mais rigoroso, mesmo quando já possuem o direito à progressão.

A permanência na prisão além do tempo estipulado é uma realidade comum, e essa situação será agravada com a sanção do PL. Isso se deve à falta de psicólogos e assistentes sociais suficientes nos quadros das secretarias estaduais de segurança pública para realizar os exames exigidos.

Em São Paulo, por exemplo, onde a população carcerária ultrapassa os 199 mil indivíduos, há apenas cerca de 195 psicólogos e 150 assistentes sociais para atender todas as demandas das unidades prisionais, incluindo a realização dos exames criminológicos. Com a entrada em vigor da lei, espera-se que o prazo atual de 3 a 6 meses para a realização do exame aumente ainda mais. Sem mencionar que, mesmo com uma população carcerária de mais de 8 mil mulheres, muitas unidades prisionais femininas não contam com psicólogos e assistentes sociais em seu quadro fixo de servidores.

Diante desse flagrante déficit de servidores, a exigência do exame criminológico resultará no fim do direito à progressão de regime. Isso equivale, como dizem popularmente, a “trancar a porta e jogar a chave fora”.

Sobre o monitoramento eletrônico

O monitoramento eletrônico de pessoas foi incluído na legislação brasileira em 2010 e, apesar de  parecer muitas vezes uma solução viável, ela tem implicações na vida das pessoas monitoradas que muitas vezes são ignoradas ou minimizadas pelo sistema de justiça brasileiro, como dificuldades de acesso ao mercado de trabalho, problemas de interação social e complicações de saúde, que vão desde desconfortos, coceira, ferimentos na área que tem contato com a pele, até problemas relacionados ao sofrimento mental, como tristeza e ansiedade. O uso da tornozeleira traz desconforto para 84% das pessoas monitoradas, segundo pesquisa do CNJ.

Além das adversidades já apontadas, é crucial mencionar o ônus financeiro associado à monitoração eletrônica. Os valores variam de estado para estado, mas ficam entre R$ 167,00 a R$ 600,00, mensais por preso monitorado. Essa despesa, que poderia ser direcionada para áreas prioritárias como saúde e educação, tornar-se-á um desafio adicional ante as inúmeras limitações orçamentárias que os Estados já enfrentam.

Diante de todas as considerações apresentadas, torna-se evidente que a sanção da Lei representa um sério retrocesso no âmbito das leis de execução penal. A restrição das saídas temporárias, a exigência da realização dos exames criminológicos e a ampliação do monitoramento eletrônico inevitavelmente acarretarão na superlotação do sistema prisional, na intensificação das condições insalubres e desumanas de sobrevivência dentro das prisões e em uma barreira ao processo de ressocialização. Para as mulheres e mães encarceradas, a restrição do benefício das saídas temporárias é uma forma de fragilização dos vínculos familiares e comunitários gerando impacto sobre o direito ao exercício pleno da maternidade e os direitos de proteção à infância de seus filhos e filhas.

 

Equipe do Programa Justiça Sem Muros, Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC)

Júlia Gimenes, cientista política, doutoranda em Saúde Pública, Promotora Legal Popular e pesquisadora do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC)

Juliane Arcanjo, cientista social, advogada e pesquisadora do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania – ITTC. Ativista da Marcha das Mulheres Negras de São Paulo e da Associação de Familiares e Amigos de Presos – AMPARAR

Michele Ferreira, advogada, mestranda em Ciências Humanas e Sociais e pesquisadora do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC)

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