‘Quebrando Mitos’ dá nó na garganta, mas nos lembra que ‘as ideias são à prova de balas’
Documentário aborda o comportamento nocivo de Bolsonaro a partir do olhar de um casal gay
Por Sérgio Madruga
Faltando poucos dias para uma das eleições mais importantes da história recente brasileira, os sentimentos mistos de ansiedade, medo, esperança, foco, parecem ser inevitáveis. Confesso que com o lançamento de “Quebrando Mitos”, o novo documentário de Fernando Grostein Andrade – codirigido por Fernando Siqueira -, sabia que ao assisti-lo, todos esses gatilhos seriam ativados. E não deu outra.
Tenho refletido e notado bastante em conteúdos diversos (vídeos, podcasts, textos), sobre como esses quatro anos foram tão avassaladores, que volta e meia, os inúmeros absurdos realizados pelo atual desgoverno reaparecem e nos lembram como foi difícil viver e passar por tudo isso. Principalmente se você possui algum marcador que está em desvantagem nesse contexto: mulher, negro, indígena, pobre e LGBTQIAPN+.
Com o grande sucesso de “Quebrando o Tabu” (2011) e depois de revelar publicamente sua sexualidade, Fernando Grostein começou a chamar atenção de setores conservadores, inclusive de Bolsonaro, sobre quem alertava incansavelmente de ser uma figura perigosa e que estava ganhando força popular. Bolsonaro foi eleito presidente do Brasil, e com isso, tudo o que ele pregava foi validado. Todo o discurso de ódio, a manipulação de informações, as fake news, os preconceitos de todos os tipos, passaram a ocupar o principal cargo de liderança do país – e rever tudo isso no documentário não é fácil.
Após receber diversos ataques, incluindo ameaças de morte, Grostein saiu do Brasil, exilando-se na ensolarada Califórnia, EUA. O trabalho em questão, nasceu a partir desse contexto amargo e solitário, mas que acendeu no diretor uma chama de inquietação em usar sua voz e expertise para o que vemos como resultado no filme.
Fernando Grostein, ao lado do marido Fernando Siqueira, apresentam uma timeline quase completa dos acontecimentos que nos levaram até os dias de hoje. Desde os primeiros anos da carreira militar de Bolsonaro, seu início risível na política, seguindo até o decisivo ano de 2018. Ah, que ano. Tudo isso sendo exposto em contraponto à jornada de vida do diretor, também começando pela infância e prosseguindo aos dias atuais.
Mas o que Jair Bolsonaro tem em comum com Fernando Grostein? Absolutamente nada, obviamente. Mas esse é o ponto: “Quebrando Mitos” se propõe a explicitar a masculinidade frágil e, pelas palavras do diretor, “catastrófica” de Bolsonaro. Característica também pertencente aos seus seguidores e semelhantes, como Donald Trump, Vladimir Putin, etc. Porém, as narrativas se conversam pelo fato de Grostein ser um homem gay, que assim como todos os LGBTs, sofrem com os aparatos da masculinidade.
Imagens revoltantes de momentos em que o atual presidente esbanjava homofobia na mídia, são contrastadas com registros do diretor ainda criança, mostrando seu fascínio por flores – algo dito como “coisa de menina”. O imperativo de “virar macho”, aliado ao meio em que Fernando estava inserido, o transformou em algo que ele não era e nem queria ser. E isso acontece com muitos de nós. Pessoas são moldadas em torno desse ideal de masculinidade, que no final das contas, só é nocivo para toda uma sociedade. As consequências disso já sabemos muito bem.
É muito corajoso abrir sua intimidade e contar sua história em paralelo ao desastroso caminho que o Brasil tomou nos últimos anos. Mas ao fazer isso, Grostein evidencia a urgência em transformar o nosso futuro. O governo Bolsonaro, assim como toda sua simbologia, resultou em perdas e desmontes irreparáveis. Uma masculinidade carregada de signos como a obsessão por armas, uma visão distorcida da fé cristã, aversão às diferenças e a violência como bandeira, definitivamente não é o modelo de país que precisamos.
Como parte desse fiel retrato do que o Brasil se tornou, a produção relembra um dos episódios mais tristes e revoltantes da política brasileira: o assassinato da vereadora Marielle Franco. Além de relacionar o crime com a ascensão de Bolsonaro e suas ideologias, o filme mostra como o legado da parlamentar segue vivo em todos nós.
“As ideias são à prova de balas”, diz Jean Wyllys em uma sessão da câmara após o homicídio de Marielle. A frase ressoou em minha mente por um longo tempo, sobretudo vindo de Jean, outro nome que assim como Fernando Grostein, precisou deixar o Brasil por motivos de segurança. Enquanto deputado federal, Wyllys viveu inúmeros momentos de enfrentamento às atitudes homofóbicas de Bolsonaro. Um exemplo de resistência e resiliência dentro da política institucional, que quando consegue eleger um corpo queer, ou mata ou exila.
Nesse retrospecto da barbárie bolsonarista, nos deparamos também com a questão socioambiental e indígena, um dos pilares que mais sofreram na atual gestão. Afinal, o que esperar de um governo que não respeita as origens do Brasil? Além de não ter visão de futuro e não apresentar um projeto de país. Dos desmontes às queimadas, vemos a Amazônia e populações indígenas lutando e resistindo às atrocidades vividas. O mesmo acontece com cidadãos periféricos, que a partir de falas como “bandido bom é bandido morto”, foram perdendo cada vez mais a proteção do Estado, se é que um dia tiveram…
Em meio a maior crise sanitária da história, mais descaso. A pandemia de Covid-19 evidenciou ainda mais a falta de comprometimento com a vida, vindo de Bolsonaro e seu governo. Descrédito na ciência, mais fake news, compras de vacinas negadas, priorizar lucro acima da saúde das pessoas, tudo isso resultou nas quase 700 mil mortes pela doença no Brasil – e contando.
Grostein revela que sofreu um burnout durante a produção do documentário – o que é bastante compreensível. O mesmo sentimento de esgotamento e angústia é passado ao espectador. Seu marido, o ator e cantor Fernando Siqueira, ajudou na finalização do longa, trazendo leveza e tornando a produção ainda mais especial. Um filme sobre o fascista e homofóbico que ocupa a presidência do Brasil, pelas lentes de um casal gay. É irônico e maravilhoso, pois sabemos que vai afetá-lo. Ou melhor, afetá-los! Todos os “Bolsonaros”, de masculinidade frágil, tóxica e catastrófica, que só se valem de gritos, ameaças, corrupções e tiros. Mas “as ideias são à prova de balas”, e seguiremos!