Os indígenas isolados sobreviverão só se continuarem isolados
Situação dos povos indígenas em situação de isolamento voluntário pode se agravar se não indígenas insistirem em adentrar suas terras, dizimando populações inteiras.
Luna Gámez para Mídia NINJA
A organização Survival International estima que existem mais de cem povos em isolamento voluntário no mundo e a maioria deles habitam na floresta amazônica brasileira. Devido à ausência de contato, carecem de imunidade para enfrentar as doenças da sociedade majoritária. O contato do coronavírus com um destes indígenas se traduziria numa rápida letalidade e poderia, inclusive, acarretar o genocídio de etnias inteiras.
“Os povos isolados são vulneráveis a qualquer doença exterior mas o coronavírus tem um agravante e é o rápido espalhamento”, explica Douglas Rodrigues, médico especializado em saúde indígena no Xingu e pesquisador da Universidade Federal de São Paulo. Rodrigues explica que esta pandemia ameaça também as populações de recente contato. Embora a vacinação de algumas doenças seja a primeira política de saúde aplicada quando se estabelece o contato com uma comunidade isolada, perante o coronavírus ninguém tem memória imunológica.
“A única medida para protegê-los é ficar longe e deixar isolado”, afirma Rodrigues que explica que nenhum contato oficial feito com isolados no século XXI provocou nenhuma morte porque os Distritos de Saúde Indígena (DSIs) possuem um protocolo de ação específico para evitar o contágio de doenças. Até a década dos 80 a política do governo brasileiro era a de fazer contato com qualquer grupo indígena que encontrasse, o que provocou episódios dramáticos como o caso dos Pararaná (também conhecidos como Krenakore). Entre 1973 e 1976, 80% dos membros da etnia morreram em decorrência do contato forçado pelo governo da época para a construção da BR-165 estrada Cuiabá – Santarém. “Os sobreviventes foram levados para o Xingu, o que foi uma medida extrema para evitar o extermínio”, explica este médico sanitarista que atende nesta área indígena.
Os estados “devem respeitar de forma irrestrita o não contato com os povos e segmentos de povos indígenas em isolamento voluntário, dado os gravíssimos impactos que o contágio do vírus poderia representar para sua subsistência e sobrevivência como povo”, anunciou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) através da resolução de janeiro de 2020.
Desde 1988, a Constituição brasileira reconhece a diversidade dos povos indígenas e o direito deles manterem sua cultura e forma de vida, e dispõe a obrigação do Estado de proteger as populações isoladas respeitando uma política de não contato. Só as Frentes de Proteção Etnoambiental da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) podem se aproximar ou sobrevoar a área sem manter nenhum contato. Estas frentes tem como missão garantir a proteção do território onde eles estão, estimar o número de indivíduos que conformam o povo e tentar decifrar o tronco lingüístico da população para se aprontar para um possível contato. Os funcionários da FUNAI só poderiam estabelecer um contato sob o risco de um massacre do povo isolado por parte de invasores ou em casos de conflitos interétnicos. Este foi o caso do contato com os Korobu, antes isolados mas que estavam em conflito territorial com os Maties no vale do rio do Javarí, no Amazonas.
Frente ao risco de coronavírus, a FUNAI informou no seu Boletim de Serviço do 17 de março que “Ficam suspensas todas as atividades que impliquem o contato com comunidades indígenas isoladas”. O anúncio ativou os alarmes. “Não tem atividades com índios isolados. Ou, acaso vai ter quando essa portaria acabar?” -questiona Rodrigues – “Me parece um oportunismo deixar aberta essa brecha”.
Desde que Jair Bolsonaro assumiu a presidência em janeiro de 2019, a FUNAI tem passado por profundas mudanças. Uma das mais recentes foi a nomeação do antropólogo e missionário Ricardo Lopes Días para ocupar o cargo de diretor da Coordenação de Índios Isolados e de Recente Contato da Funai (CGIIRC) da FUNAI em janeiro deste ano. O regulamento da própria instituição foi alterado para poder colocar uma pessoa não concursada neste posto. Até os anos 90 Lopes formou parte da Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), uma ONG estadounidense rebatizada recentemente como Ethnos360. “Não descansaremos até que a última tribo, a última família, o último homem tenha escutado a maravilhosa palavra do Senhor Jesus Cristo”, reza o lema desta organização que anunciou em fevereiro que Deus teria lhes provisto de um helicóptero para continuar espalhando sua presença, inclusive nos povos mais isolados. A antigamente conhecida como Missão Novas Tribos foi alvo de acusações de contato forçado com o povo Zo’é, no interior do Pará. Depois de vários anos presentes na comunidade, os missionários foram expulsos do território em 1991 pela FUNAI, em decorrência da morte de 45 indígenas contagiados com doenças externas. A gripe e a malária, entre outras acabaram com um terço da população da comunidade, mas o processo judicial de investigação foi arquivado sem incriminar a MNTB.
Quando nomeado responsável dos povos isolados, Lopes afirmou que não promoveria a evangelização de indígenas. No entanto, o cenário preocupa aos indigenistas. “É como colocar uma raposa cuidando de um galinheiro”, declara o médico Rodrigues. Nesta semana, a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Unijava) acionou uma ação civil pública na Justiça Federal de Tabatinga, estado do Amazonas, para exigir que a FUNAI expulse os missionários que ainda permanecem na área violando as restrições de circulação às pessoas não indígenas e colocando em risco de contágio as comunidades contatadas e às isoladas.
O contato com funcionários do governo ou com missionários se colocam hoje como dois importantes vetores de risco de contágio para os povos isolados, no entanto não são os únicos. As outras duas vias pelas quais estes povos podem ver violado seu isolamento voluntário são o contato com outros grupos indígenas – o que tem acontecido em momentos nos quais os isolados tem se encontrado ameaçados – ou a invasão de garimpeiros, madeireiros e outros extratores ilegais de recursos da floresta. Uma ameaça perante a qual o Governo se mantém não só omisso, mas também conivente. Só na Terra Indígena Yanomami, onde já tem um caso de coronavírus positivo além do registro de uma morte de um adolescente, tem se registrado um aumento do número de garimpeiros que se eleva segundo as estimações a mais de 30.000, um número que quase se equipara ao da própria população Yanomami. “Nossos antepassados morreram no passado de epidemias dos não indígenas. Não vamos deixar acontecer outra vez!”, declara um comunicado da Associação Yanomami Hutukara (HAY) onde as lideranças solicitam que seja impedida a circulação ilegal nas suas terras. Além disso, eles chamam a atenção para a presença de grupos indígenas em isolamento voluntário e o risco que correm perante a presença dos invasores. “Nosso território também abriga os Moxihatëtëa, que escolheram continuar isolados. Eles são ainda mais vulneráveis a doenças, e não sabem nada da Xawara (febre do douro) que trazem os não indígenas. Sabemos das leis que foram feitas para protegê-los, elas devem ser garantidas. Não queremos ver os Moxihatëtëa sofrer como sofremos no passado”.
Segundo o Fórum Permanente das Nações Unidas sobre Questões Indígenas que teve lugar em maio de 2019, 119 comunidades indígenas em isolamento voluntário na América do Sul enfrentam graves ameaças para a sua sobrevivência como resultado da contaminação dos rios, diminuição de animais para caça e pesca, aumento de doenças contagiosas e destruição dos lugares sagrados na cosmovisão desses povos isolados. Estas populações dependem 100% da floresta. A maioria deles circula dentro de territórios indígenas já demarcados por serem em teoria áreas mais protegidas. Este fato revela a dupla necessidade de proteção das Terras Indígenas demarcadas (ou em processo de demarcação): para garantir os direitos das comunidades contatadas que ali moram, assim como para proteger a possível presença de grupos isolados.
Asfixiados pela falta de alimento e pela presença de invasores clandestinos na procura de recursos, os povos isolados estão em permanente fuga e cada vez mais limitados nos seus movimentos. Hoje, são ainda mais vulneráveis, porque em qualquer momento podem se deparar com um grupo de madeireiros ou garimpeiros que podem ser um vetor de contágio por coronavírus. Cabe ao governo de Bolsonaro velar pela sobrevivência destes povos e isso só é possível, agora mais do que nunca, garantindo o seu isolamento, sob o risco de ser responsável de um genocídio anunciado.