O imenso José Celso Martinez Corrêa, uma das maiores instituições vivas de nossa cultura, não morreu de causas naturais. Foi vítima do mesmo mal que destruiu, parcial ou completamente, uma inaceitável fatia do patrimônio nacional. Honrá-lo é fazer da cultura a grande Fênix na reconstrução e na união do Brasil, nação cultural e potência mundial.

A vez e voz de Zé

Foi a vez de Zé, o maior!

José Celso Martinez Corrêa, nosso Zé, foi o maior e o melhor dentre todos os antropófagos da revolucionária antropofagia cultural brasileira. E Zé ainda é, porque queira-se ou não, Zé é e será, por todo o sempre, uma das maiores e mais significativas instituições já nascidas do chão próprio dessa imensa nação cultural que é a nação brasileira, uma potência mundial. Socialmente, filosoficamente, economicamente: que a antropofagia nos una.

Não trabalhamos com viralatismo e isso também eu aprendi com Zé. O Zé das Multidões. O Zé das Artes. O Zé catártico, do Teatro Popular Brasileiro. O Zé ali do Bixiga. O Zé gigante do Teatro Oficina. Nosso Zé, porque ele era o Zé de todos nós. Sem ser ufanista jamais, José Celso Martinez Corrêa foi o mais brasileiro entre os brasileiros: Zé do Brasil, potência global.

Escrevo pensando em Zé e, ao pensar em Zé, perco o fôlego… Recupero mas volto a perdê-lo, repetidamente.

É que Zé era mesmo de tirar o fôlego.

E Zé continua sendo… Eis aí o milagre.

Teatro vivo.
Encantamento.
Magia antropofágica.

Só quem quem viu Zé de perto sabe do que estou falando…
Seja Zé em cena ou Zé simplesmente vivo, respirando, mesmo calado.

Foi esse Zé que perdemos.

O fogo devorador das artes

O imenso José Celso Martinez Corrêa não faleceu de causas naturais. Zé Celso foi vítima de um incêndio acidental, tal como ocorreu com o Museu Nacional, com o Museu de Arte Moderna, com o Memorial da América Latina, com o Liceu de Artes e Ofício, com o Museu da Língua Portuguesa e também com a Cinemateca Brasileira.

Todas essas instituições e outras de menor monta tiveram seus acervos, parcial ou totalmente, destruídos pelo fogo numa repetitiva tragédia que revela o quanto de precariedade, de descaso e negligência se acumula em nossa cultura.

Agora sucedeu com Zé, e Zé não era um sozinho. Zé estava assistido. Zé não era carente, muito antes pelo contrário: Zé Celso fez da precariedade uma potência e foi sempre um sujeito coletivo, como seu Teatro, artesanalmente industrial, e como sua companhia, uma comunidade reluzente que ao longo de décadas brilha com sua singularidade e sua excelência no meio do cinza que dá cor a São Paulo.

Zé era potência pura, e por isso, em Zé, papo de vulnerabilidade nem cola porque apesar dos longos, lindos e loucos 86 anos de vida, Zé vivia bem longe da solidão involuntária característica das multidões envelhecidas do mundo desenvolvido.

Se não tivesse nascido na periferia do capitalismo mundial, Zé Celso teria morrido naturalmente rico, no fim da vida já seria certamente um milionário. Afinal, quanta riqueza Zé produziu para o Brasil?

A grandeza do legado, sua imensa produtividade, o trabalho constante e duro ao longo de tantos anos em qualquer país que monetiza e dá lastro econômico à sua produção de bens simbólicos, um acidente como o que vitimou Zé Celso seria praticamente impossível, não apenas por todas as cadeias de proteção e prevenção de riscos associadas à cadeia de produção cultural e ao patrimônio derivado dela, mas também pelas políticas ativas de qualidade de vida e condutas de redução de riscos no entorno de pessoas de idade avançada, pessoas com deficiência ou expostas a qualquer situação de vulnerabilidade.

Precisamos desnaturalizar a morte

Os 86 anos gloriosamente vividos por Zé Celso nos ofereceram uma relativa paz, uma vez consumada a fatalidade de sua trágica partida.

Morrer um velho é normal e como Zé estava velho, seria naturalmente sua hora… A tragédia começa justamente aqui: tudo que o capitalismo espera dos velhos é que eles finalmente morram e deixem de dar despesa. Essa é a tônica dominante até mesmo nos longevos países do mundo desenvolvido. Essa é a lei tácita sob a qual fecham-se as cortinas enquanto a plateia aplaude e pede bis, pronta para acatar e aceitar silenciosamente o final do espetáculo.

No calor da dor, o fogo no apartamento do Paraíso tornou-se mero detalhe. Muita gente que amava Zé preferiu nem ver o fogo. Nas milhares de homenagens havidas, apenas Caetano pôs o fogo com toda sua dramaticidade em cena e mesmo Caetano preferiu não pensar sobre o fogo.

Eu próprio dei minhas voltas mentais ao redor das chamas em busca de algum sentido na repetição dos incêndios que já devoraram tanto da cultura e das artes no Brasil. Nosso patrimônio perdido para o fogo.

Durante esses sete dias, o fogo me provocou sempre uma repetida e incendiária revolta, que tratei de calar, em respeito às homenagens mais que merecidas. Pus minha indignação no baú da dor e nesse sétimo dia, com a tácita autorização que a melhor tradição revolucionária da antropofagia me confere, desfaço o nó que há na minha garganta para gritar: Basta!

O céu sobre nossas cabeças

Zé não estava no aguardo da morte. Lúcido e sempre brilhante, trabalhava em uma montagem de A QUEDA DO CÉU, antropofagicamente inspirado pela sabedoria ancestral de Davi Kopenawa, o xamã do povo Yanomami.

Embora a tragédia seja por excelência o grande gênero da dramaturgia e a dimensão sagrada do Teatro alcançado por Zé Celso iniba as injustiça éticas e estéticas no ato de sua saída de cena, como discípulos da mesma antropofagia, precisamos desnaturalizar o fogo no Paraíso para ouvir a voz daquelas chamas, de modo a vencer definitivamente tudo aquilo que nos inviabiliza, nos destrói e nos devora, impossibilitando o que mais amamos. Se a antropofagia nos une, a pirofagia nos reúne e há de nos levar além.

O fogo não pode ser o final trágico de uma vida gloriosa e apoteótica. Precisa necessariamente ser seu ponto de mutação: Zé, o mártir. O que morreu pelo renascimento das artes e pela dignidade dos trabalhadores da cultura, pelo direito à felicidade sempre, inclusive na velhice.

Zé, o que literalmente deu sua vida pelo reencantamento da vida em nossa sociedade cronicamente adoecida e agora agudamente subsumida numa silenciada pandemia de transtornos de saúde mental temperados pela solidão das pessoas conectadas em rede.

Não se pode viver sem Zé Celso

Desnaturalizar a morte de Zé é preciso!
Viver não é preciso e não se pode mais viver sem Zé Celso, porque Zé somos nós.

Como Zé, nós desejamos muito. E de tanto desejar, fazemos o que desejamos. Por isso, o fogo vivo de Zé agora brilha em nós pelo respeito e a valorização da cultura brasileira que precisam ser traduzidos em direitos e em mais dignidade para seus trabalhadores.

Enquanto prevalecer a precariedade, nosso patrimônio cultural seguirá vulnerável e seguirá faltando dignidade na vida dos milhões de brasileiros que ganham seu pão produzindo nossa cultura e nossas artes. Especialmente os mais velhos, os que mais precisam de garantias de dignidade e respeito.

E você, trabalhar da cultura, pergunte-se já qual velhice você quer viver e quais direitos quer assegurar, porque a hora de lutar por eles é agora. Ou Lula ou nunca!

Vamos à luta!

Retomar uma agenda de conquista de direitos é urgente!

É preciso sanear as finanças e assegurar o pleno funcionamento das companhias, grupos, coletivos, institutos e organizações, com ambição econômica e estratégias de sustentabilidade para abolir a informalidade e para que a robustez econômica da cultura brasileira seja toda ela, por fim, lastreada também em dinheiro.

Precisamos acabar com o mito de que artista verdadeiro é artista pobre e sem viabilidade econômica. Abaixo o pobrismo e o viralatismo!

O pobrismo como ideologia sempre foi uma arma da colonialiedade contra a robustez econômica da cultura brasileira, essa potência mundial. Queremos riqueza!

Riqueza para todos já! Dinheiro para o povo brasileiro gastar!

Direitos e dignidade para todos os trabalhadores e também para os trabalhadores da cultura, ainda hoje excluídos de direitos básicos!

Abaixo à maldição da informalidade! Queremos o décimo terceiro!

Queremos férias! Queremos viver com qualidade de vida e ficar bem velhos! Queremos ter direito à felicidade na velhice! Queremos ocupar tudo como nosso desejo e com nossa arte porque Zé somos nós e por isso está vivo!

Viva Zé! Parque do Bixiga já!