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Se não imaginarmos alternativas, não haverá nenhuma

por Jaqueline Fernandes

A população negra, em África e diáspora, tem sido forçada a concentrar-se nas emergências por sobrevivência. A luta por direitos inegociáveis como liberdade, teto, pão, dignidade, cultura, cidadania, saúde física, mental, espiritual e emocional, infelizmente, não é algo novo, sobretudo nas vidas das mulheres negras. Para o desespero de muitos, nossas antepassadas nos deixaram como legado a ousadia de pautar e se articular em torno de muito mais do que apenas sobreviver.

Chegamos até aqui porque as que vieram antes não abriram mão daquilo que parecia inalcançável: construir e ocupar outros lugares, além dos que foram predeterminados pelo patriarcado e pelo racismo colonial sistêmico. Essas utopias, utopias negras, são tecnologias ancestrais, às quais devemos, mais do que nunca, recorrer como possibilidade de direção agora. Sonhar para combater o absurdo.

Conectadas com histórias de resistência que não nos contaram nos livros, aprendemos que a memória é uma disputa constante e avançamos para o futuro, guiadas pelo pássaro Sankofa. Ele olha para a frente, enquanto se move para trás e nos diz: “Se wo were fi na wosankofa a yenkyi – não é tabu voltar para trás e recuperar o que você perdeu”.

Vivendo na prática essa herança filosófica, ancestral e não linear, nos tornamos sementes. E, como afirma o provérbio bantu, a semente é mais velha que a árvore. As utopias de nossas mais velhas nos trouxeram até aqui e nos levarão além.

De 22 a 27 de julho, realizaremos a 13ª edição do Festival Latinidades e, por meio dela, queremos reafirmar que as nossas utopias têm valor e podem mudar o mundo para melhor. Não abriremos mão dos nossos próprios marcos imaginativos, porque já temos um rol de conquistas a partir deles. Utopia para nós é tradição, é fundamento.

Somos um festival multilinguagens, que parte do lugar das artes e da cultura para dialogar, disputar narrativas e fortalecer diferentes saberes de mulheres negras: na academia, na rua, em casa, na escola, no chão de fábrica, na comunicação, nos movimentos sociais, na gestão de políticas públicas…na diversidade infinita das nossas potências e possibilidades de produção de conhecimento.

Somos plataforma de formação, cultura, inovação, impacto social, encontro, encanto, acolhimento, celebração e resistência – em exercício constante de decolonialidade. Queremos compartilhar e conhecer outros sonhos de rebeldia, amor, coragem e transformação. Abrir novas frentes de trocas com outros pares e pautas. Em 2019 saímos de Brasília para São Paulo; falamos sobre “Reintegração de Posse” e acolhemos o debate sobre masculinidades negras. Em 2020 teremos a nossa primeira edição 100% online e queremos ampliar diálogos com as nossas irmãs indígenas.

A pandemia de Covid-19 escancarou as desigualdades que já estruturavam o planeta e abriu espaço para mais distopias. A luta por sobrevivência se complexificou e tem demandado quase tudo de que podemos dispor. Não está nada fácil. Principalmente sabendo que somos alvos. Contudo, não podemos abrir mão de redesenhar o futuro, a partir das nossas próprias óticas, éticas e utopias. As distopias paralisam. As utopias têm o poder de nos impulsionar.

“Mataram o sonhador e não o sonho” – esse mantra estava em um dos cartazes, empunhados no enterro de Martin Luther King Jr. Mas com tudo o que temos para lidar, será que nós ainda conseguimos sonhar?

Às vezes parece que vamos nos afogar em notícias ruins – umas atrás das outras. Sentimentos, imunidades, movimentos e energias oscilam minuto a minuto. Chegamos a pensar que é impossível, ou até perigoso, nutrir esperança. Mas utopias não são o perigo. Perigoso é, justamente, não sonhar. Estamos acostumadas com frases como: “sonhar não paga contas, é ingenuidade, coisa de criança” (e de que crianças estamos falando, afinal?).

A quem interessa a negação das nossas utopias e do nosso direito a projetar o futuro? Por que apenas uma pequena parcela da humanidade está autorizada a isso? Existe um projeto capitalista, genocida, que quer moldar os nossos sonhos, enquanto nos pressiona a optar entre sonhar ou sobreviver. Mas como sobreviver sem sonhar?

25 de julho é o Dia da Mulher Afro Latino Americana e Caribenha. No Brasil esse dia foi instituído por lei, em 2014: Dia Nacional de Tereza de Benguela, fruto de anos de articulações dos movimentos de mulheres negras. Pelo décimo terceiro ano, estaremos, mais uma vez, provocando e sendo provocadas a celebrar o Julho das Pretas, como marco de luta das mulheres negras na diáspora. Nossa história nasce de muitas utopias, herdadas e construídas. Não vamos parar. Vilma Reis já nos alertou: “somos a esperança nos escombros”. Então, na mesma lógica do fique em casa, se puder, por favor, sonhe!

*Jaqueline Fernandes é coordenadora geral do Festival Latinidades