Uma menina estudada é uma criatura perigosa
Educação de qualidade com equidade de gênero pode mudar a sociedade. Há muitos exemplos de mulheres que a transformaram.
O que é óbvio para muitas pessoas precisa ser dito e enfatizado todo ano até que a realidade seja alterada de fato. A sociedade é desigual; a educação é desigual; crescer menina é crescer em uma luta cotidiana por igualdade; crescer menina negra, indígena, periférica, do campo, deficiente é ainda mais. A manutenção da desigualdade por séculos de história só interessa a um grupo, aquele que está no poder e tem medo de perdê-lo.

Nos resta, cotidianamente, fazer a pergunta: quem tem medo do empoderamento de meninas e mulheres por meio da educação? A quem interessa que 13% das meninas até 16 anos ainda não tenham completado o ensino fundamental? A quem interessa que 9 milhões de meninas não tenham terminado o ensino médio na idade adequada? A quem interessa que jovens mulheres de 15 a 29 anos tenham 26% de chances de não estarem nem estudando nem empregadas, face a 15% de jovens meninos na mesma faixa etária?
Temos as respostas. 26% das meninas que estão fora da escola, deixaram a educação básica porque foram trabalhar. 23% porque engravidaram. 10% porque estão em situação de trabalho doméstico. Às vezes, os cenários se sobrepõem: meninas em trabalho doméstico, que engravidaram na adolescência por abuso sexual. A responsabilidade é do abusador; é do aliciador; é da negligência familiar. É claro que há rostos entre os culpados por cada caso. Mas individualizar a responsabilidade não vai mudar, sozinha, essa realidade.
A responsabilidade é de uma sociedade que ainda faz de pouco do machismo cotidiano, que acha que trabalho doméstico de meninas é ajuda e não trabalho infantil, que coloca a culpa na adolescente pelo estupro. A responsabilidade é coletiva. E, em uma democracia, há instituições e representantes que assumem a responsabilidade coletiva de trabalhar – e receber salários com recursos públicos – para transformar essa realidade. A responsabilidade é do Estado. E quem é o Estado?
O Estado começa na escola, na universidade, passa pelo posto de saúde, pelo centro de assistência social. O Estado é a diretoria de ensino, é a secretaria de educação, é a prefeitura, o governo. O Estado é o conselho de educação, é o Tribunal de Contas, é o Ministério Público, é a Defensoria Pública. O Estado é a Câmara de Vereadores, é a Assembleia Legislativa, é o Congresso Nacional. O Estado é o Ministério da Educação, é o Ministério dos Direitos Humanos, é o Ministério da Mulher, é a Casa Civil, é a Presidência da República. O Estado são todos aqueles funcionários públicos concursados, cargos de confiança e representantes eleitos que, ao tomarem posse, se comprometeram com a Constituição Federal e com todas as pessoas residentes em território nacional. O Estado somos cada um/a de nós que, ao conquistarmos a cidadania – e para nós, mulheres, foi ainda mais dura essa conquista -, nos responsabilizamos de forma compartilhada e coletivamente por quem elegemos e por fazer o controle social do Estado – que não é nada abstrato, são muitas pessoas.
Acontece que, neste Dia Internacional das Mulheres (#8M), momento em que a luta por igualdade de gênero na perspectiva interseccional tem um de seus maiores pontos de mobilização, precisamos ressaltar mais uma vez que, num Estado enfraquecido pelos efeitos das políticas de austeridade fiscal, não é possível legitimar discursos progressistas sem as suas práticas.
Reformas de Estado entre 2016 e 2021 reduziram a capacidade do Estado brasileiro de atender sua população no serviço público e na educação prejudicaram de forma acentuada mulheres e meninas, sobretudo com os marcadores sociais que mencionei no começo dessa conversa. (Leia uma síntese dos principais impactos ao final do texto).
É urgente, portanto, garantirmos um Estado fortalecido. É condição mínima para a igualdade de gênero na sociedade e, claro, na educação. Para isso, o novo Plano Nacional de Educação, agenda prioritária neste ano no Congresso Nacional, precisa ter elevado o debate em sua tramitação.
“Deve-se enxugar o PNE”, é o que ouvimos em Brasília sobre a renovação da principal legislação da educação. “Baixar o sarrafo” é outra expressão usada. “Não dá pra ficar sonhando mais”.
Se o Congresso Nacional comprar (às vezes literalmente) esses discursos, estará negando direitos a milhões de pessoas – em especial, as meninas e mulheres – por mais uma década.
Não aceitaremos trocar rosas e posts de Feliz Dia da Mulher por nossos direitos, muito menos pelo direito à educação de cada e toda menina. Queremos mais Maries Curie, mais Lises Meitner, mais Olympes de Gouges, mais Rosas Park, mais Nises da Silveira, mais Dandaras, mais Simones de Beauvoir, mais Angelas Davis, mais bels hooks, mais Valentinas Tereshkova, mais Malalas Yousafzai, mais Marias da Penha, mais Berthas Lutz, mais Dorothys Mae Stang, mais Harriets Tubman, mais Lélias Gonzáles.
Queremos mais mulheres perigosas que transformem sua educação e suas vidas em ações que mudem, de verdade, o mundo. Que neste 8M as ruas e as redes estejam cheias de reivindicações neste sentido.
Impactos das Reformas de Estado entre 2016 e 2021 na educação de meninas e mulheres, segundo estudo “Não é uma Crise é um Projeto – Caderno 2”, da Campanha Nacional pelo Direito à Educação:
Desigualdade salarial:
– A remuneração das mulheres, tanto no setor público quanto no privado, permanece inferior à dos homens.
– A precarização e a desproteção no trabalho afetam principalmente as mulheres, especialmente as mulheres negras.
Precarização no trabalho:
– As mulheres, maioria na área da educação, enfrentam maiores riscos devido à crescente precarização do trabalho.
– Mulheres negras estão em situação ainda mais vulnerável nesse cenário.
Desigualdade salarial na docência:
– O rendimento médio dos docentes com ensino superior completo nas redes públicas (meta 17 do PNE) é menor que a média nacional de outros profissionais com o mesmo nível de escolarização.
– Dentro da carreira docente, as mulheres – mesmo sendo maioria – ganham menos que os homens, e docentes brancos têm vantagem salarial crescente em relação aos docentes pretos e pardos.
Impacto nas políticas educacionais:
– Medidas como a Lei de Cotas, expansão do ensino superior e EJA, que visam reparar a exclusão histórica da população negra, sofrem com desfinanciamento e precarização.
Exclusão escolar:
– Desigualdades estruturais aumentam o risco de exclusão escolar, principalmente para estudantes negras.
Desafios no financiamento da educação:
– O não cumprimento do Plano Nacional de Educação (2014-2024) e os cortes no financiamento da educação pública prejudicam o direito à educação, especialmente de estudantes negras e negros.
Acesso desigual à creche:
– Meninas de 0 a 3 anos têm menos acesso à creche do que meninos (39% ante 41%, respectivamente), conforme dados do Balanço do PNE 2024-2024 produzido pela Campanha.