Por Rafael Bittencourt*

A primeira vez que entrei na agência de publicidade na qual trabalhei por alguns anos, lembro que achei incrível uma coisa muito simples: as salas de reuniões tinham paredes de vidro. Ao mesmo tempo que lembro também de quando trabalhei numa escola de atividades criativas, em que tudo era feito e pensado com e através de post-its. Reuniões e aulas eram sinônimo para uma parede colorida pelos papéis adesivos e, para mim, por muito tempo, esse era o resumo de um processo criativo.

Claro que isso não é mais verdade há alguns anos. Inclusive, lembro sempre de uma palestra que vi de Brian Collins, em que ele caçoava desse tipo de profissional, chamando-os de “posties”. E não dá pra negar que o design estratégico foi se aproximando tanto dos post-its que seu significado está colado permanentemente a este objeto. “Design é para resolver problemas”, dizem. Apesar de não concordar, essa frase sempre ecoa na minha cabeça nesse tipo de conversa sobre o significado do Design.

No dia 4 de maio pela manhã me reuni com um grupo de amigos para decidir o que fazer. E, bom, caro leitor, se você não entendeu o que aconteceu em maio, provavelmente você não mora no Sul do Brasil. Para quem estava aqui, esses dias são inesquecíveis. Inclusive, falar inesquecível é um tanto curioso. Durante essa reunião, peguei um post-it, desses de designer, e escrevi “não esquecer das chuvas”. Minha sensação era de que as chuvas seriam rápidas e logo as pessoas esqueceriam e, por isso, nós deveríamos lembrá-las num projeto futuro.

Eu achei que as chuvas seriam rápidas, porque eu nasci e cresci em um bairro chamado Sarandi, que há anos alaga de tempos em tempos. Mas nenhuma chuva era tão longa que promovesse uma enchente tão duradoura. Nesse mesmo dia, fomos, eu, minha esposa e minha sócia para a Vila Elizabeth. Lembro do choque de ver um movimento tão caótico que, por causa das urgências, nos separou. Ao chegar mais próximo das águas, não existiu tempo de reflexão. Nada era tão importante enquanto tudo era tão óbvio. Numa pausa, fui correndo até a minha antiga casa, onde minha avó mora hoje, ver até onde a água tinha ido, já que nas enchentes anteriores a água nunca chegou lá. Não consegui acessar, a água já tinha tomado quadras anteriores. Inclusive, casas de amigos e parentes estavam submersas, já que estavam mais ao fundo da vila. Nesse momento, lembro de ser interrompido e ler uma mensagem sem sentido num grupo nacional de voluntariado. Mandei um áudio, chorando, brabo, dizendo: “eu não sei mais como explicar pra vocês a merda que tá aqui”. Parecia ficção.

Esse foi só o primeiro dia e nem foi tudo. Daqui pra frente, foram noites mal dormidas, refeições negligenciadas e ausência de serviços básicos, como luz e água. E veja bem, caro leitor, eu só estava sem água. Apesar do paradoxo de uma cidade tomada pela água, ficar sem esse mesmo recurso, eu ainda tinha tudo o que eu tinha na semana anterior. Diferente de amigos, membros da família e centenas de outras pessoas. Perder artefatos físicos pessoais é perder significados também. Vi meu bairro abaixo d’água e não dava pra continuar fazendo as coisas da mesma maneira.

Criamos um grupo de voluntários, começamos a arrecadar doações em dinheiro e comprar itens básicos, como produtos de higiene, alimentos e remédios. Tudo parece muito pouco quando tudo é urgente. Trabalhávamos ao acordar e só parávamos quando fechávamos os olhos para dormir. Conseguimos arrecadar praticamente R$60.000,00, o que na época não era nada e ainda hoje só é maior do que a doação do Nego Di. Nesse ritmo insano, algumas coisas acontecem e, por não serem mais importantes do que as urgências, acabam passando batido. Por exemplo, o ex-BBB citado anteriormente, junto com todos os outros políticos, celebridades e empresários, se aproveitando da catástrofe do estado do Rio Grande do Sul para promoção pessoal e das suas agendas.

Pareceu que, naquele momento, quem pensou na frente, conseguiu vantagem de nós, as pessoas que estavam, efetivamente, na linha de frente preocupados com o básico. É dolorido, mas apesar das urgências, ainda precisamos ser críticos. Claro que, com o tempo, era fácil entender as movimentações que aconteciam, e, nisso, sistematizar comunicações, projetos e o que mais surgisse para enfrentar a situação. O contrate.rs nasceu assim, de um pensamento crítico da economia do estado, durante esse período caótico, que conseguiu sensibilizar parceiros incríveis para o projeto ficar de pé. Além de vários outros projetos como “Água até aqui” e a plataforma “Meu lar de volta”.

Num desses dias de maio, li de um designer que deveríamos redesenhar o estado. Essa foi a primeira vez que pensei no Design, na verdade. Mas redesenhar? Um estado inteiro? Agora? Pareceu pouquíssimo crítico e muito heróico. Parece que a única utilidade do Design é trabalhar daqui pra frente, reinventando tudo do zero, quase que sem nenhum processamento do que nos levou até aquela situação. Inclusive, endereçar a causa da situação foi uma problemática gigantesca. Ninguém queria falar sobre. Falar que ficamos submersos em água de esgoto por causa da negligência da administração pública do estado e do município, parecia um pecado. Falar que esses eram efeitos das mudanças climáticas também não era tão romântico. Vi várias iniciativas surgirem, mas não vi tantas críticas, principalmente do meio corporativo que estava inserido em agendas governamentais. O que, escrevendo agora, além de ser um desperdício, evoca um sentimento de raiva gigantesco.

Eu sou a favor do Design, não me entenda mal, caro leitor. Mas, diferente da visão romântica de alguns estrategistas, eu não acho que vamos salvar o mundo. Eu não acho nem que resolvemos tantos problemas quanto falamos. Talvez, no fim, eu só não tenha fé no designer profissional mesmo. Nossa profissão precisa ser muito mais crítica, mas parece que gastamos muito tempo nas salas de vidro querendo ser mais criativos escrevendo em notas adesivas coloridas.

No meio disso tudo, conversei com uma amiga pesquisadora, a Karine Freire, que me disse algo que me martela até hoje: “Requer outra epistemologia pra pensar nisso tudo”, quando falava sobre a reconstrução do estado. Mudanças epistemológicas não vão acontecer em sistemas que não fomentam a crítica sobre o próprio sistema. Falar sobre Schon e a prática-reflexiva parece mais necessário do que o cliente do centro e Design Thinking ultimamente.

Hoje é julho. Muita gente esqueceu do que a gente viveu, principalmente pessoas que nem estavam aqui. O Design me atravessou durante esse período e foi difícil finalmente colocar essas palavras pra fora. Não que essa escrita precisaria ser fácil, mas poderia ser mais óbvia. Escrevi muito e sinto que não cheguei em algum lugar concreto. Tudo o que eu tenho é um apelo para repensarmos a prática de design de forma sistêmica e regenerativa. Claro que mudanças estruturais são complexas, mas parece que nos esquecemos que elas precisam começar de algum lugar. Desde as chuvas, penso sobre como reimaginar nossas iniciativas. Reimaginamos nossa empresa, projetos, nosso jeito de trabalhar. Reimaginamos o que estava ao nosso alcance. Só que esse momento exige que comecemos a construir. Mudar, de fato, comportamentos, desde as relações de trabalho até às práticas projetuais, que contemplem todos os seres vivos nos ecossistemas dos quais fazemos parte. Os “usuários no centro” já foram contemplados há muito tempo, precisamos pensar a partir das margens. 

Tem gente que sente medo do barulho da chuva até hoje. Tem gente que ainda não sentiu medo nenhum. No fim das contas, parece que o post-it não foi em vão.

*Rafael Bittencourt é sócio da Guaraipo, um laboratório de pesquisa e design que tangibiliza projetos de tecnologia para impacto positivo. Recebeu o prêmio MyWorld360 na ONU pelo mini-documentário em realidade virtual Cipó de Jabuti, além de ser Alumni da rede Global Shapers do Fórum Econômico mundial.