Um pacto para tirar Bolsonaro sem manter o bolsonarismo. Entrevista com Marcelo Freixo.
Marcelo Freixo atualmente é deputado federal pelo estado de Rio de Janeiro. Em 2007, assumiu o primeiro mandato na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, e já no primeiro ano protocolou um pedido de abertura Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar a ação das milícias no Rio. A CPI foi arquivada durante um ano e meio […]
Marcelo Freixo atualmente é deputado federal pelo estado de Rio de Janeiro. Em 2007, assumiu o primeiro mandato na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, e já no primeiro ano protocolou um pedido de abertura Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar a ação das milícias no Rio. A CPI foi arquivada durante um ano e meio e logo aberta após a tortura bárbara que os jornalistas do jornal O Dia sofreram por milicianos. Essa comissão mudou a história da segurança pública do Rio. Como consequência da CPI, foram presos muitos líderes milicianos, entre eles deputados como Natalino (Guimarães, ex-DEM, acusado de ser o chefe da milícia “Liga da Justiça”) e vereadores como Jerominho Jerônimo Guimarães, do PMDB, (irmão de Natalino e preso sob a mesma acusação) e Cristiano Girão (acusado de chefiar milícia em Gardênia Azul, zona oeste do Rio).
Antes de se eleger deputado estadual, Freixo trabalhou como pesquisador da ONG Justiça Global. De 1993 a 1995, foi diretor do Sindicato dos Professores (SINPRO) de São Gonçalo e Niterói. Participou como voluntário no projeto de prevenção ao HIV – AIDS nas prisões do estado durante os anos de 1995 e 1996. Em quase 20 anos de trajetória, coordenou projetos educativos no sistema penitenciário.
O personagem de Diogo Fraga, do filme “Tropa de Elite 2” foi inspirado na figura do Freixo. Quando perguntado sobre a veracidade de algumas cenas e do seu personagem, Freixo respondeu: tem muito de ficção. “Eu nunca fui casado nem com a ex-mulher do Coronel Nascimento nem com a do Wagner Moura. Aliás, a minha mulher, que é jornalista, tem respondido a essa pergunta sistematicamente”, brinca.
“Na realidade, negociei várias rebeliões em presídios. Mas aquela cena do tiro no preso dado pelo policial do Bope nunca aconteceu. Quando tinha rebelião no Rio, o Bope me chamava e ia me buscar em casa. Negociei dezenas de rebeliões junto com o Bope e nunca houve um refém, preso ou guarda ferido. Sempre tiramos os reféns com vida, os presos saíam com vida e sem serem torturados ou, como eles falam, sem ‘o esculacho’. Agora, a cena do colete aconteceu de verdade. Eu estava entrando no presídio em rebelião e um comandante disse para mim: ‘Bota o colete’. Eu disse: ‘Não. Tenho que andar uns 50 metros e eles estão com as armas lá. Se quiserem me atingir, vão me atingir’.
Marcelo Freixo é um ícone dos movimentos em luta pela defesa dos direitos humanos. Sua história também representa a história de muitos professores e trabalhadores da educação que atuam em áreas marginais, periféricas, com a certeza de estar transformando a vida de muitos dos seus compatriotas. Em entrevista, ele responde sobre sua experiência como educador nas prisões e sobre a atualidade política e privada do Brasil.
Segundo sua experiência, como a educação nos presídios pode ajudar a diminuir a violência e o conflito social?
Sem sombra de dúvidas, qualquer projeto dentro do sistema prisional relacionado à educação tem grande impacto na vida da pessoa que está cumprindo pena. Há uma massa carcerária hoje de baixíssima escolaridade, grande maioria da população é negra jovem que tá presa, e ela nunca teve um significado da escola nas suas vidas. A prisão não é um instrumento de exclusão social, ela é um instrumento de consolidação da exclusão social anterior. Não é à toa que a grande maioria da massa carcerária é negra, jovem, moradora de periferia de favela e de baixíssima escolaridade. Quando entra um projeto de educação que possa ser transformador daquela realidade tudo pode mudar. Por isso que o projeto de educação não pode ser um projeto conservador, ele tem que partir da ideia do conhecimento que esses prisioneiros têm das suas vidas. De que profissões eles construíram, que experiências eles tiveram, experiências familiares de moradia, do nível de oportunidade de trabalho. É necessário saber que tipo de saber que eles construíram ao longo da vida, antes de serem detidos. Tudo isso tem que ser aproveitado num processo de reconstrução da autoestima, para fazer com que eles criem alternativas na vida dentro do cárcere, para que ela que não tenha perspectivas somente ou exclusivamente de crime. Então sim, um projeto de educação é muito poderoso, é muito transformador dentro da cadeia, e deveria vir um grande investimento em relação a isso, mas infelizmente não acontece.
Qual o nível de risco que atravessa quem entra num presídio para educar, curar ou fazer qualquer ação reconciliatória do sujeito preso com a sociedade?
Eu trabalhei nas prisões durante muitos anos da minha vida. Comecei a trabalhar com 21 anos de idade e trabalhei por mais de 15 anos direto com projetos de educação, depois trabalhei com fiscalização, trabalhei com prevenção de HIV, e nunca foi um lugar com algum tipo de risco para um profissional de segurança, nem para o profissional técnico. Dentro das prisões trabalham psicólogos, assistentes sociais, dentistas, médicos, e é um trabalho muito gratificante e muito importante. Geralmente esse trabalho é feito em condições muito precárias, tanto dos agentes de segurança quanto dos chamados técnicos. Mas é evidente que nesse período de pandemia não se pode permitir a circulação de pessoas de dentro para fora de fora para dentro, porque tem uma questão de pandemia e você não pode comprometer a vida dos prisioneiros. Mas fora disso, não é um lugar de de risco para as pessoas, muito pelo contrário, é um lugar muito gratificante.
Por que precisamos de uma política pública ativa e urgente hoje nas periferias no combate à Covid-19?
A coisa que mais me preocupa hoje em dia em relação ao coronavírus é exatamente a proliferação dessa pandemia nas áreas mais pobres das grandes cidades. Nós temos uma primeira onda de contaminação que veio de uma população que frequentava mais aeroportos, viagens internacionais, e isso já começa a ser superado. Mas agora isso chega nas populações mais pobres e periféricas. O grande remédio que o mundo inteiro está adotando segundo a Organização Mundial de Saúde é o isolamento, para que um número grande de pessoas não seja contaminado ao mesmo tempo e o sistema de saúde tenha condições de atender, evitando o maior número de óbitos.
Nesse ponto, a grande preocupação com as áreas mais pobres é a impossibilidade de isolamento e de uma higiene básica. As áreas sem saneamento básico são muito grandes, tem muitas pessoas que moram com muita gente em casa pequenas e isso dificulta o isolamento. E sem contar a quantidade enorme de pessoas que vivem no lugar sem água, o que dificulta uma higiene básica para enfrentar questão do coronavírus. Os leitos de quase todas as grandes cidades já se encontram lotados. Há pouquíssimas possibilidades de leitos, principalmente em UTI. Os aparelhos respiradores são um número muito reduzido diante do crescimento do número de contágios.
É nesse momento que eu falo que já passamos de 100 mil brasileiros contaminados, uma taxa de morte de 7%. Isso vai sem dúvida alguma chegar a um número muito alto de brasileiros mortos e principalmente mortos pela desigualdade, mortos pela falta de acesso aparelhos e à condição de se preservar. São sem dúvida alguma todas as medidas que poderiam ser tomadas, desde a renda básica, que permite que as pessoas fiquem em casa sem passar fome, garantindo segurança de emprego para que as pessoas não tenham que sair de casa a qualquer custo para trabalhar.
Quanto piorou a violência e a corrupção institucional nas periferias do Rio hoje com a chegada do bolsonarismo? (Lendo bolsonarismo como legitimação da violência institucional e como radicalização do discurso de desprezo pelos direitos humanos)
O governo Bolsonaro tem uma base autoritária. Ele se baseia em quatro elementos importantes: apoio dos generais do exército, relação de armamento na sociedade, ou seja os projetos de lei vindos do próprio executivo, ou de deputados da base que estimulam o armamento generalizado na sociedade. Evidentemente quem vai comprar arma é um perfil de eleitor bolsonarista, ele tem uma relação muito próxima com milícias, e também com policiais militares, estimulando Inclusive a quebra da hierarquia. O episódio que nós tivemos aqui no Brasil, no Ceará, da polícia inclusive enfrentando o estado, exigindo fechamento de comércio, teve o apoio do Bolsonaro e apoio de gente muito próxima ao Bolsonaro. Essas são forças que Bolsonaro tenta usar para quebrar o monopólio da força do estado e criar uma força policial de apoio armado ao presidente. Sem dúvida alguma que isso estimula uma violência cotidiana, e isso leva a polícia a sentir que está acima da lei, que tem um presidente que dá respaldo a ações mais violentas. Isso tudo é muito perigoso no dia a dia de uma sociedade muito desigual, onde a polícia já cumpre um papel que não é dos mais simples, e não pode, e não deveria ser estimulada a incrementar sua violência.
Que diferença faria hoje, com essa pandemia ocasionando essa crise, um governo com uma vocação forte em políticas públicas?
Faz muita falta ao Brasil um governo que fortaleça as instituições e que tenha políticas públicas mais claras, tanto na área de saúde, de educação, de segurança, de moradia. E nós vamos precisar, principalmente depois da pandemia, de um estado mais forte. A mão invisível do mercado não vai resolver as questões centrais que nós vamos necessitar resolver em um país, que já era desigual antes da pandemia, e que provavelmente se tornará mais desigual depois da pandemia. Inclusive no que diz respeito ao número e o perfil dos seus mortos. Nós vamos precisar do fortalecimento do SUS, vamos precisar de uma educação pública que dê conta de famílias devastadas pelo coronavírus. A gente está falando numa possibilidade de morte de 500 mil e até um milhão de pessoas. Se o Brasil tem 210 milhões de habitantes, e nós tivermos 70% da população contaminada e a taxa de mortalidade continuar de 7% a gente pode estar falando aí de aproximadamente um milhão de brasileiros mortos, e isso é muito grave. Isso poderia mudar completamente a sociedade.
Nós vamos precisar, principalmente depois da pandemia, de um estado mais forte.
E para se restabelecer, para construir de novo uma mínima normalidade, não pode ser a normalidade do passado. Aquela sociedade que existiu até o coronavírus não vai existir mais, e nós vamos precisar de políticas públicas mais eficientes, que tenham em conta a desigualdade, a tragédia que se abate sobre essa população. Isso muito provavelmente não acontecerá com o comando de Bolsonaro à frente da presidência da República.
Uma peça publicitária do governo do presidente Jair Bolsonaro usada para divulgar o programa Pró-Brasil gerou polêmica por nela aparecer só crianças loiras. Você acha que a sociedade brasileira está em um momento em que já não se reconhece a si mesma?
Fazer uma propaganda com só crianças brancas e loiras não tá falando do Brasil. O Brasil é marcado por uma população negra muito grande e muito forte. O Brasil é o segundo país com maior número de negros do mundo, só perde para Nigéria. E não tem nenhum cabimento qualquer imagem que vem a retratar uma realidade social brasileira que só tenha crianças brancas, e principalmente falando de educação. São muitos os erros nesse sentido.
Há pouco tempo o MEC fez uma propaganda inclusive muito grave falando do não adiamento do ENEM na prova e dizendo que as pessoas podem estudar em casa através da internet. Como se os alunos de escola pública tivessem condições de ter aulas online. Como se as escolas públicas estivessem em condições de ofertar essas aulas online. Então é uma desconsideração com a realidade muito violenta, muito agressiva, e que gera mais desigualdade nesse país.
Se acontecer o impeachment de Bolsonaro, qual seria o passo a seguir? Que panorama vislumbra após uma hipotética queda do presidente?
É muito difícil que tenha o impeachment nesse momento em que eu estou dando essa entrevista. Bolsonaro hoje tem 200 deputados a favor. Para ter impeachment tem que ter voto. Impeachment não é um desejo de uma parcela da sociedade. O Bolsonaro tem, segundo as pesquisas Datafolha, 36% dos brasileiros que acham seu governo bom ou ótimo, neste momento em que ele cometeu tantas atrocidades. Então nós vamos conhecer melhor também a quem que a gente chama de povo brasileiro. Tem 36% que acha bom o que ele faz. Isso significa que 36% dos brasileiros são fascistas? Eu acredito que não. Porém, você pode ter aí 10, 12 e 15% de brasileiros concordando com o que há de mais grave no governo Bolsonaro, que são suas posições fascistas, autoritárias, de fechamento do Congresso, do Supremo Tribunal Federal. O papel da oposição, o papel das forças democráticas é reduzir esse 36% ao número de fascistas que são iguais a ele, de 12% de 15% no máximo. Só assim é possível pensar no impeachment.
E o impeachment tem que ser acompanhado de um projeto. Qual é o projeto? Acontece o impeachment do Bolsonaro e quem assume é Mourão, que é seu vice, um militar. Qual vai ser o governo do Mourão? Que pacto vai se fazer para conseguir a retirada do Bolsonaro num possível impeachment que não têm correlação de forças agora para acontecer? Será no governo de Mourão? Terá acordo para isso? É preciso ter responsabilidade. Na hora de falar impeachment tem que saber de que projeto a gente tá falando. Com que correlação de forças estamos falando e com que tipo de pacto para não ter uma sociedade que tira o Bolsonaro mas continua com os problemas do bolsonarismo.
Bolsonaro não começa e não termina com Bolsonaro. Ele já cometeu muitos crimes e poderá sofrer um impeachment quando for reduzir a sua popularidade e ele perder apoio no Congresso, que não é o que tem hoje. Mas se isso acontecer, isso tem que ser a partir de um projeto, de um pacto entre setores amplos da sociedade que querem um destino e um caminho diferente para o Brasil.