SP Invisível: Maria aparecida de Jesus, mas pode me chamar de Doidinha
“Quem tá na cadeia tá livre, tem visita e tudo. Aqui a gente tá preso, aqui é a verdadeira prisão.”
“Quem tá na cadeia tá livre, tem visita e tudo. Aqui a gente tá preso, aqui é a verdadeira prisão. A gente tá preso em vaidade, em vício, orgulho. Temos que pensar em coisas boas: amor, carinho, alegria, felicidade. Meu nome é Maria Aparecida, mas pode me chamar de Doidinha.”
Meu sonho é que as pessoas sejam iguais a vocês: amem as pessoas, não o dinheiro. Se eu fosse rica e tivesse muito dinheiro, eu investiria muito em trabalhos como o de vocês, trabalhos que espalham sentimentos bons.
Eu gosto da vida! Eu amo a vida! O problema é que a gente tá preso, não só preso no vício da droga, tem o vício da rua também! Quem tá fora da rua também tem vícios, todo mundo tá preso.
Hoje sou feliz. Tenho pouco, mas sou feliz. Sou feliz até porque tenho pouco. Não sei se eu seria feliz com um carrão e uma mansão, acho que seria deprimida. A felicidade não tá nisso.” #SPInvisivel #ACidade QueNinguemVe
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Nunca entendi direito o que o apóstolo Paulo quis dizer na Bíblia ao dizer que “as coisas loucas deste mundo são usadas para confundir as mais sábias”, até que numa andança pelo centro da cidade, eu conheci a Maria Aparecida de Jesus ou, como ela prefere ser chamada, a “Doidinha”. Durante nosso papo, esse versículo vinha direto na minha cabeça e vocês vão entender o porque disso.
Era um sábado cinza no Vale do Anhangabaú. Tudo estava meio deserto, uma cena não muito comum pensando que, de segunda a sexta, aquela região é tomada por uma correria maluca. No meio dessa calmaria, vimos uma mulher que estava conversando sozinha. Isso é muito comum na rua devido ao fato da solidão ser, às vezes, a única companhia dessas pessoas. São essas que sempre me chamam atenção. Dessa vez não foi diferente, fui abordá-la junto com as pessoas que estavam comigo. Além do Gabriel Catite, fotógrafo voluntário do SP Invisível, um grupo de faculdade nos acompanhava para um trabalho.
Assim que chegamos perto, como de costume, fui explicar o projeto para ela. Sempre faço isso e algumas vezes as pessoas não topam conversar, outras topam e é bem difícil do papo fluir, mas poucas invertem a situação e começam a puxar o assunto com a gente, normalmente é nós quem perguntamos, nós que puxamos o assunto. Com a Doidinha foi diferente, ela nem respondeu se topava participar ou não e já foi falando:
“As pessoas não gostam de mim porque não gostam de ouvir verdades. Eu sou muito verdadeira comigo mesma e com os outros”.
Hoje, quando ouço essa fala dela no áudio que gravamos, lembro da cena e penso em como a Doidinha é, eu acredito que tenha entendido melhor o que ela quis dizer: a “Doidinha” é de verdade, ela é a vida real, ela é um ser humano que está morando na rua, essa é a realidade que tanto incomoda a gente, por isso fechamos nossos olhos e escolhemos não ver as “doidinhas e doidinhos” que são colocados na nossa frente, eles nos mostram “a verdade da vida que é insuportável”, como diz o Kivitz, rapper, primo e irmão, em seus versos.
Acredito que foi essa verdade que nos conectou ali naquele momento, uma verdade que nos pegou desprevenido, uma verdade silenciosa, que ninguém vê ou ouve, mas ao mesmo tempo tão gritante e tão na nossa frente que assim que assim que alguém vê, é impossível não fazer alguma coisa. Ninguém que passa por ali durante a semana imagina a potência da história de uma Doidinha. Aí que está a loucura dos sábios, ou também, a sabedoria dos loucos.
Não coloquei na história que foi postada na página, mas ela também comentou sobre a sua trajetória de vida, não apenas suas reflexões. A Doidinha é mineira da cidade de Frei Jorge. Segundo ela, veio para São Paulo muito nova procurar a liberdade que a cidade oferecia. Logo depois, ela conheceu a pedra (crack) e aí ficou presa nesse vício. Ela fala de uma maneira muito poética e até melancólica. “Liberdade” e “prisão” foram exatamente os termos que ela utilizou ao se referir à cidade e à droga. Achei que eu tinha alterado alguma palavra devido à repetição (às vezes faço isso, mas sem alterar o sentido – ex: vim morar na rua/vim morar na calçada/caí nessa situação de rua), mas dessa vez não foi, na entrevista ela disse exatamente desse jeito.
Esse paralelo entre liberdade e prisão foi muito frequente na nossa conversa, até utilizei de uma fala dela que ela nos disse no final do papo para começar o seu texto:
“Quem tá na cadeia tá livre, tem visita e tudo. Aqui a gente tá preso, aqui é a verdadeira prisão. A gente tá preso em vaidade, em vício, orgulho”.
Depois, ela também estende isso não só para quem está na rua – “Quem tá fora da rua também tem vícios, todo mundo tá preso”. Se me pedissem pra desenhar essa reflexão que a Doidinha fez, penso na seguinte ilustração: uma pessoa andando em direção a algo que simbolize a liberdade (pra mim é um campo, algo como uma fazenda), mas com uma bola de ferro no pé. Em qualquer lugar que ela estiver, ela vai estar presa se não tirar essa bola do pé. Foi para isso que a Doidinha me abriu os olhos e tenta abrir os seus, para quais são as nossas prisões e onde a gente busca nossa liberdade.
Algumas pessoas eu reencontro, tenho a oportunidade de mostrar a repercussão da foto, bato outro papo, mas nunca mais vi a Doidinha em nenhum lugar. Não tive esse privilégio. Não sei também como ficou o trabalho de faculdade das meninas que acompanharam esse dia, mas elas deram a sorte grande de terem encontrado alguém como a Maria Aparecida neste dia, foi uma aula, bem melhor do que a entrevista que concedi ao grupo delas depois. Espero que elas tenham feito bom proveito dessa conversa com ela, até porque a minha entrevista é o de menos. Se o trabalho era sobre o SP Invisível, era sobre a Doidinha. Ela é o SP Invisível, ela é a verdade.