40º dia de isolamento. Se quarentena fosse, estaria acabando, mas a epidemia não dá sinal de arrefecer. Consciente de que o isolamento social é a estratégia possível para enfrentá-la, me sinto ameaçado de morte por governantes como o presidente Jair Bolsonaro e o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, psicopatas adoradores do bezerro de ouro que querem reabrir o comércio e retornar à “normalidade”, sem dispor de qualquer estratégia para debelar ou controlar o vírus e sem oferecer qualquer garantia de segurança para a vida das pessoas, como se o “normal” fosse promover milhares de mortes evitáveis.

Quem não quer sair do isolamento? Abraçar as pessoas, amar intensamente, retomar o trabalho em conjunto ou, simplesmente, deslocar-se livremente sem máscara e sem (esse) medo? Alguém, em sã consciência, pode desejar que a economia fique eternamente parada, que pessoas percam empregos e sua fonte de subsistência, que aumentem a fome, outras carências e a violência, entre outras?

A despeito das minhas condições privilegiadas de isolamento, em quarto privativo, salário na conta, comida no prato e um bosque à vista, tudo o que quero é poder sair voando daqui, ficar amando loucamente, rever outros lugares e curtir os amigos por inteiro. Imagine, então, quem não tem casa ou quarto, vive empilhado, perdeu o trabalho, está doente, sem comida, remédio ou cachaça. Na guerra contra o inimigo invisível, Bolsonaro e Ibaneis cantam como sereias, atraindo para a morte.

O nível de isolamento social que temos conseguido, em torno de 50%, está abaixo do recomendado para debelar a epidemia em menor tempo, mas já evitou uma expansão ainda mais rápida e desastrosa para o sistema de saúde. Vamos resistir, chorar, espernear e protestar, mas não vamos cair no canto das sereias assassinas.

A história do Brasil é truncada pela sobreposição de um povo e de uma história de fora para dentro, ou para cima de outros e de outras, numa espécie de desencontro múltiplo e continuado. Guerras e revoluções, quando não fracassaram, deixaram marcas pontuais e lembranças fragmentadas. As maiores tragédias da nossa história são pouco conhecidas ou tornadas invisíveis para a maioria das pessoas. Não conformaram uma memória coletiva, compartilhada. Assim, a cada nova ameaça, instaura-se um clima de “salve-se quem puder”.

Que essa fragmentação histórico-cultural não sirva de álibi para a irresponsabilidade de ninguém, muito menos dessas criaturas mortais. Que seja um alerta para afinar o nosso instinto coletivo de sobrevivência e nos fazer entender, com o menor custo irreversível, que as angústias e limitações do isolamento são bem melhor suportáveis, mesmo em condições difíceis, do que hospitais sem leitos, covas coletivas, contêineres congelando cadáveres, pessoas morrendo sem assistência nas ruas, nas regiões mais remotas ou dentro das suas próprias casas, enquanto as sereias cuidam de tentar se reeleger ou eternizar-se.

As sereias estão no poder, podem mobilizar assessores e obter as informações que quiserem sobre a evolução da epidemia. Podem dispor das experiências dos países afetados antes de nós. Sabem, portanto, que “normalizar” as atividades sem controlar a epidemia só amplia os danos, inclusive econômicos, da sociedade, para atender a políticos e negociantes que ganham a vida com a morte dos outros.

Seria em legítima defesa, mas não recomendo a eliminação física das sereias mortais. O salve-se quem puder não constrói o futuro de uma nação. Vamos armando, desde o silêncio dos nossos retiros, uma reação política coletiva para acabar com o poder delas o mais rápido possível, de preferência antes que nos eliminem fisicamente.