Santa Dulce, Ebomi Cidália e São Francisco de Assis: sabedoria para além da fé
O que liga uma santa católica a uma sacerdotisa de candomblé e a um homem santificado que viveu no século XIII?
O que liga uma santa católica a uma sacerdotisa de candomblé e a um homem santificado que viveu no século XIII? Respondo rápido: a forma como transformaram suas práticas religiosas em histórias de amor pelas pessoas, pela natureza e por sua fé de uma forma que a transcendeu para além da sua instituição religiosa. São Francisco e Irmã Dulce têm suas festas celebradas neste mês de outubro (dias 13 e 4, respectivamente).
Dulce dos Pobres, a primeira brasileira reconhecida como santa pela Igreja Católica, nasceu em Salvador, no dia 26 de maio de 1914. Sua mãe, Dulce Maria de Souza Brito Lopes Pontes morreu quando ela tinha sete anos. O pai, Augusto Lopes Pontes, era dentista e bem conhecido na capital baiana. Após se formar em magistério, Maria Rita, como se chamava civilmente, resolveu seguir a vida religiosa. Após ingressar na Congregação das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição da Mãe de Deus, tornou-se Irmã Dulce assumindo o nome religioso em homenagem à mãe.
O passar do tempo e a disseminação da história, especialmente na Bahia, onde Irmã Dulce já era considerada santa ainda em vida, talvez ofusque um pouco do que foi a sua trajetória de rebeldia para cumprir um programa que traçou para si mesma: tornar-se amparo para as pessoas que ficam esquecidas- pobres, especialmente os doentes e idosos. E crianças também. Principalmente as órfãs.
As Obras Sociais Irmã Dulce (Osid) um impressionante complexo destinado à promoção da saúde- são hospitais, ambulatórios com atendimento totalmente assegurado pelo SUS- além de programas educacionais e de formação profissional nasceram a partir de um galinheiro, instalado no convento onde morava. Mais do que impressionante esse episódio dá, para quem quiser desejar saber mais, informações sobre os desafios que Irmã Dulce superou para cumprir o que achava certo.
O galinheiro foi o refúgio depois que ela comprou briga com donos de imóveis – que invadia para colocar seus doentes. As ameaças soavam perigosas e muito fortes. Nas primeiras décadas da chamada República Velha, a Bahia já sentia os desequilíbrios da explosão da pobreza com o ciclo vicioso da herança colonial que transformava a migração para a capital como alternativa para driblar a fome. O problema só piorou. Agora há algum tipo de oferta de políticas públicas, embora signifiquem muito pouco para o tamanho do dilema com solução mais difícil no atual contexto do Brasil. Irmã Dulce também não era bem vista pelo poder público local- depois do aumento da fama é que esse aspecto da história mudou-, pois seu trabalho na fase inicial, na leitura dos gestores, incentivava a ocupação de uma área propícia ao turismo, como os arcos próximos à Igreja do Bonfim, na Cidade Baixa.
Do ponto de vista institucional, Irmã Dulce também desafiava sua congregação, pois o modelo era de semi clausura, ou seja, as religiosas não faziam serviços fora do convento. Saíam em casos extremamente necessários. Mas Irmã Dulce ia transgredindo para além do que lhe era permitido e logo ela própria se tornou uma instituição. O preço pessoal foi bem alto com o seu isolamento ao lado de uma companheira no antigo Convento Santo Antônio, que hoje é a sede da Osid e o centro do complexo onde está também o santuário em sua homenagem, no bairro de Roma, na capital baiana.
O amparar de Irmã Dulce esteve ligado ao resgate da dignidade. Os projetos da sua obra não são assistencialistas apenas. Buscam devolver a dignidade. Lembro de uma vez que estive, nas minhas atividades de repórter, na unidade de saúde especializada em crianças. Além da brinquedoteca, notei o carinho da equipe técnica em fazer o possível para minimizar os sofrimentos da doença em tão pequenos corpos por meio de detalhes como estipular para uniforme algumas peças que se aproximam do que se veste no dia a dia- bermudas, camisetas e vestidos- padronizados mas em estampas bem coloridas. Além disso, as meninas e meninos que tinham força para circular estavam brincando (sob a observação atenta, mas disfarçada, das enfermeiras e assistentes sociais), na área aberta.
Essa atual grande obra- hospitais, ambulatórios, centro de formação profissional e educação- foi iniciada pela dona de um corpo frágil devido aos tormentos de uma doença pulmonar crônica. A curvatura das costas- típica de quem precisa fazer um esforço maior para respirar seguidamente- e a voz quase inaudível, nas entrevistas que ficaram registradas, mostram parte do seu desafio aos limites individuais. Segundo os relatos de pessoas próximas, ela dormia sentada- tanto por efeito de uma promessa mas também pelo desconforto quando deitava. A causa dos esquecidos- sem teto na condição de doentes, muitos envelhecidos ou crianças deixadas à sua própria sorte- se misturava à sua fé que se tornou ação concreta e, por isso, tão impactante.
Filha de Iroko
Fascínio e admiração também eram sentimentos comuns para quem tinha convívio próximo ou casual com Cidália Soledade, conhecida como Ebomi Cidália de Iroko. Iniciada no candomblé aos sete anos pela ialorixá Maria Escolástica da Conceição Nazaré, Mãe Menininha (celebrada em uma bela composição por Dorival Caymmi-Oração de Mãe Menininha) transformou-se numa fonte inesgotável de saber sobre as nuances, especialmente filosóficas, de sua prática religiosa.
Ebomi Cidália era chamada de “a enciclopédia do candomblé” por outro grande, o doutor em educação, poeta, designer e professor Jaime Sodré que partiu de forma inesperada em agosto desse ano. Foi o título que ele escolheu para a biografia de Ebomi Cidália, que tive a honra de assinar como co-autora.
Chama-se ebomi a sacerdotisa de candomblé que passa por uma obrigação específica após um período da sua iniciação. Considera-se que a formação sacerdotal está concluída e, por isso, ela é “uma mais velha” na sua comunidade. É dentre as ebomis que saem as lideranças dos terreiros quando se têm essa missão. E, nesse caso, o título era mais do que apropriado.
Eu tive a sorte de conhecê-la de perto. Foi um presente. O professor Jaime Sodré se referiu dessa forma ao encontro que marcou para que eu a conhecesse. Daquela tarde de dezembro em diante passei a ser uma ouvinte atenta e ela se tornou uma das minhas fontes mais preciosas para reportagens sobre as religiões afro-brasileiras, além de ter me ensinado muito sobre a visão de mundo a partir da experiência religiosa.
Dizia: “Eu vejo e sinto orixá como vejo e sinto as pessoas”. Gostava de lembrar, divertida, a ocasião em que fez uma palestra para jovens que iam se tornar padres e seus orientadores em uma universidade baiana. Ao falar entusiasticamente sobre Exu e sua nobreza como mensageiro recomendou que a ele se mostra gratidão, mas não precisa pedir nada porque ele já sabe o que se quer antes da formulação do pensamento e se é adequado proporcionar. Foi quando um dos padres a interrompeu ao que parecia incomodado pelo rito de se ofertar comida às divindades do candomblé. No caso de Exu, ele se referiu a uma farofa de dendê . Ebomi Cidália respondeu:
-Padre, quem não gosta de uma farofinha de manteiga bem sequinha? Imagine uma de dendê, bem feitinha. Ah! Exu gosta de coisa boa. Quem não gosta? Orixá come o que a gente come. Por isso a gente capricha.
Ao final do relato dava a sua famosa risada, mas bem discreta como se para conferir se a interlocutora ou interlocutor conseguiu acompanhar seu raciocínio. Se não, ela, como boa educadora, completava o ensinamento: “Não se preocupe em ficar pedindo coisas a Exu, não. Ele conhece tudo e está sempre atento à proteção do seu povo”.
Ebomi Cidália não fez nenhum curso do sistema de educação superior. Mas, como dizia, gostava de conversar com antropólogos, historiadores e jornalistas porque sabia ensinar sem contar “fundamento de candomblé” . Entendia que era uma forma também de combater o ódio e o preconceito contra a sua religião. Era atenta. Lia jornais e também passou a acompanhar com atenção redes sociais a partir dos conteúdos que visitantes lhe mostravam ou sobre o que estava curiosa por conta de alguma polêmica.
Alturas
A vi por duas vezes em atividade mais marcante nas suas lições filosóficas. A primeira foi diante do comentário inapropriado de uma jornalista durante um evento em que Ebomi Cidália era a convidada. A pessoa comentou que achava que o transe no candomblé era fingimento. Um comentário, no mínimo, infeliz diante de uma pessoa que tinha acabado de fazer um relato sobre a sua fé em todos os elementos básicos da sua prática religiosa. Mas com sua voz tranquila e educadora respondeu:
-Pois eu estou nessa religião há 70 anos, minha filha, e nunca vi alguém fingir. Agora imagine você sentadinha aí e aparece um homem de uns dois metros, preto, bem retinto, e em iorubá diz a você com uma voz retumbante: “Eu sou Ogum”. Você suporta isso, minha filha?
Diante do silêncio da moça, ela mesma respondeu:
-Suporta não. É por isso que eles vêm assim: na água; nas matas; no raio, no trovão e nas pessoas. Porque os olhos e os outros sentidos humanos não aguentam presenciar determinadas manifestações do sagrado. Veja que até os cristãos dizem que ninguém pode ver Deus porque não suporta. Cai durinho.
Em outra ocasião, ela participou de uma missa celebrada em um terreiro liderado por uma pessoa próxima a ela. Foi uma das muitas homenagens que recebeu quando completou 70 anos de iniciada no candomblé em 2007. O padre era da Igreja Brasileira, uma cisão do catolicismo. Após acompanhar os ritos da missa, Ebomi Cidália se aproximou do padre, elogiou a forma como ele conduziu a celebração, agradeceu e disse:
-Padre, o senhor sabia que nós também temos um hosana nas alturas?
Essa saudação é de um momento da missa em que se proclama o quanto o Deus cristão é santo e está em uma posição acima das questões da humanidade, embora, em certa medida, atento a elas.
E então contou sobre o seu orixá Iroko da forma especial como ela sabia narrar os itans, um método de ensinamento sobre as cosmogenia no candomblé que algumas pessoas chamam também de mitos. No final sempre há algum tipo de ensinamento que nos faz pensar e a partir daí aprender para alguma experiência cotidiana.
Ela começou dizendo que Iroko não era exatamente a gameleira, mas morava em seu interior. Foi mandado para a terra por Olorum, no início do mundo recém criado. Olorum ou Oludumare é o deus supremo dos nagôs e deixa aos seus filhos orixás as demandas relacionadas à humanidade. Como as deusas e deuses estavam ainda em meio a homens e mulheres, Olorum pediu a Iroko que ficasse atento e sempre observando para preservar suas irmãs e irmãos com status de divindade e defendê-los se fosse necessário. Olorum, do alto da sua sabedoria, entende como a humanidade não se comporta direito.
Um dia, Iroko ficou muito aborrecido porque achou uma tremenda falta de respeito dois homens brigando embaixo da sua sagrada moradia. A irritação o fez começar a crescer em direção às nuvens. A copa da gameleira se esticava cada vez mais em direção aos céus até que Olorum percebeu e fez um gesto para que parasse. E Ebomi Cidália, então, arrematou: “Iroko tava nas alturas maiores. É padre, mas sabe que Deus também tem pai né?
O sacerdote, de olhos arregalados, continuava boquiaberto. E ela completou:
-Deus também tem pai. Mas em outro dia a gente conversa mais sobre isso.
Além disso, Ebomi Cidália tinha um mapeamento próprio de todas as gameleiras que estavam de pé em Salvador. Sabia as que estavam em espaço público e as cultivadas na intimidade dos terreiros que têm a sorte de manter uma área verde significativa. Uma vez me contou, indignada, como envenenaram uma dessas árvores para que um trecho de asfalto fosse acrescentado sem obstáculos. Isso porque ela é bem resistente.
Dizia que o tempo em sua casa, era como nos terreiros: contado de uma outra forma. Por isso não ter pressa em conversas com ela era a primeira exigência do contrato de proximidade. Me chamava de “minha estagiária”, o que guardo como um título precioso, como se fosse um desses de nobreza. Era, segundo ela, porque eu gostava e tinha paciência para ouvir. Mas como não ouvir e ser encantada por aquela voz que narrava, mas também cantava e traduzia quando eram trechos em iorubá? Ebomi Cidália faleceu em 22 de março de 2012, aos 82 anos.
Aproximação pela prática
Mas por que ela e Irmã Dulce me levaram a São Francisco? A primeira é fácil de entender. Como o santo nascido em Assis, se dedicou aos pobres. A escolha de Francisco por eles foi o início de muitas das suas dores. Foi perseguido pela alta cúpula católica de então. A teimosia em persistir no seu caminho e amor à “irmã pobreza” e a todas as criaturas da natureza no seu lindo canto onde chama a água, a lua, o sol e animais de irmãos quase o levou a ser o promotor, sem querer, do primeiro cisma na Igreja Católica, muito antes da reforma de Martinho Lutero.
Já em relação a ebomi Cidália é algo mais circunstancial. Assim como o exemplo de São Francisco encanta até quem é de outras religiões, Ebomi Cidália conseguia também. A sua inteligência aguçada e domínio de narrativa a fazia ser celebrada para além do candomblé entre artistas, jornalistas, pesquisadoras e pesquisadoras das mais variadas áreas do conhecimento.
Um dia, casualmente, não me lembro a circunstância, ela me falou de São Francisco. E me disse que ele foi associado a Iroko no encontro do candomblé com o catolicismo que já demandou tantas e tantas pesquisas e estudos, inclusive para apontar que sincretismo, o termo mais utilizado, não dá conta, da forma como ficou banalizado, para um fenômeno tão complexo e antigo. Diferentemente de outras ocasiões não me deu explicações detalhadas sobre essa aproximação que, geralmente, costuma ser bem explícita de entender pela semelhança de elementos, digamos, biográficos, como Oxalá com o Senhor do Bonfim. Eu não perguntei porque aprendi a ler o silêncio nas entrevistas com o povo de terreiro. Ela apenas me disse e repetiu. Então, lhe dei de presente, em seu aniversário, que era no mês de fevereiro, um boneco de pano, que representava São Francisco de Assis. Ela riu muito e o guardou com carinho. Mandou colocá-lo em uma peça ao lado da sua cama. Imagino que estávamos ali no campo de um mistério que ela, como sempre sábia, achou que não deveria falar muito. E eu saí com a certeza de que havia aprendido mais uma lição vinda daquela senhora e minha “mais velha”, tantas vezes impressionante.
Assim como São Francisco, Ebomi Cidália, e Santa Dulce dos Pobres, por meio das suas biografias, têm muito a ensinar ainda. Talvez nos dê mais esperança em tempos tão duros.