Ruralistas empurram Congresso para confronto com STF e governo
O que os ruralistas consideram como soberania do Congresso é, na verdade, monopólio, e a exclusão dos demais poderes do processo decisório sobre o tema
O Climatempo previu que nesta semana poderá ocorrer um recorde histórico de temperatura no país, com os termômetros chegando perto dos 45ºC em Cuiabá, capital do Mato Grosso e do agronegócio. A onda de calor no Centro-Oeste decorre do El Niño, o aquecimento das águas do Pacífico na região equatorial, agravado por sua vez pelo aquecimento global. O fenômeno provocou uma baixa recorde nos níveis dos rios Negro, Solimões, Madeira e Amazonas.
Em vez de alertar, o calor excessivo parece agravar a dificuldade da bancada ruralista para perceber a gravidade e a urgência da crise climática. Ela insiste na agenda corporativista, que vai de liberar agrotóxicos a impor um “marco temporal” às demarcações, limitando os direitos territoriais indígenas.
Assim que foi anunciada a promulgação da Lei 14.701 de 20 de outubro 2023, que dispõe sobre as demarcações, o acesso e o uso econômico das terras indígenas, a Frente Parlamentar de Agropecuária, denominação formal da bancada ruralista, já divulgou uma nota criticando os vetos do presidente Lula sobre a norma e se dispondo a derrubá-los no Congresso. Lula vetou grande parte da lei, inclusive o “marco temporal”, tese ruralista já rejeitada como tal pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em um julgamento específico sobre o tema.
De acordo com essa tese, os povos indígenas só teriam direito às terras que ocupavam em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição. A interpretação desconsidera que inúmeras comunidades foram expulsas de seus territórios e, assim, legitima injustiças.
Acima da Constituição
A nota ruralista considera que os vetos, por sua extensão, afrontam a decisão “soberana” do Congresso de aprovar o projeto de lei em questão. E desconsidera que a promulgação parcial do texto aprovado foi uma opção do Executivo por uma mediação, em vez de adotar o veto integral.
Na verdade, o Congresso tentou constranger o STF, interpondo-se a ele, ao aprovar o projeto a toque de caixa, sem consulta aos povos indígenas, instituindo o “marco temporal”, justamente quando o tribunal concluía o seu histórico julgamento a respeito do assunto, iniciado há mais de dois anos.
O que os ruralistas consideram como soberania do Congresso é, na verdade, monopólio, e a exclusão dos demais poderes do processo decisório sobre o tema. A mesma Constituição que define a competência legislativa do Congresso, também prevê a iniciativa legislativa do Executivo, além de seu poder de veto sobre propostas legislativas, e a atribuição do Judiciário de julgar a constitucionalidade das leis.
Os ruralistas devem reconhecer que o jogo de pesos e contrapesos entre os poderes é da essência da democracia e que o papel do Congresso, até por conta do seu caráter plural, é de construir mediações, em vez de impor posições unilaterais, sobretudo num tema tema delicado como o de direitos de minorias.
Além disso, a soberania da Constituição está acima das competências dos poderes. É ela que os define. E ela, em nenhum momento, refere-se a “marco temporal”, tese que sequer constou dos debates sobre os direitos indígenas na Assembleia Nacional Constituinte.
Concluir demarcações
A referência temporal que a Constituição menciona, no Artigo 67 dos Atos das Disposições Transitórias (ADCT), é a de que a União deveria concluir, em cinco anos, a demarcação das terras indígenas ainda não demarcadas. O fato de que, 35 anos depois, essa determinação não foi inteiramente cumprida não pode resultar em restrições aos direitos indígenas.
A intenção dos constituintes de ver as demarcações logo concluídas foi a melhor possível: efetivar os direitos territoriais indígenas reconhecidos e alcançar a solução de conflitos. Porém, as pressões dos interesses afetados, a falta de vontade política, a insuficiência de orçamento e de pessoal e a interposição de decisões judiciais tornaram impossível o cumprimento do prazo.
No entanto, se não o prazo, permanece válido o espírito daquela intenção, de superar, o quanto antes, as disputas devidas a pendências e indefinições fundiárias. Resta a ser concluído apenas um terço dos processos de demarcação já abertos na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). A solução para esses procedimentos restantes exige novos instrumentos e depende de mediação, e não de imposição, nas relações entre os poderes.
Mediação
No julgamento sobre o “marco temporal”, o STF poderia ter se limitado a dizer “sim” ou “não”, acolhendo-o, ou não, ao ordenamento jurídico. Mas os ministros foram além, acordando um conjunto de teses sobre as demarcações, sintetizado num texto com 14 itens, entre os quais o direito à indenização, pela terra, a portadores de títulos emitidos pelo poder público.
O intuito das teses do STF também foi o de mediação, mas a bancada ruralista considera-as uma usurpação da competência do Congresso para legislar. Só que a tese da indenização não caiu do céu e já foi objeto de iniciativa legislativa pelo Senado, que a aprovou, por unanimidade, como emenda à Constituição, sem que a Câmara a tivesse discutido a sério e concluído a sua tramitação.
Se os ruralistas conseguirem derrubar os vetos presidenciais, vão deixar nas mãos do STF a decisão final sobre a vigência dos dispositivos vetados, pois, como não foram discutidos e acordados, é previsível a judicialização. Com isso, o Congresso acabaria transferindo para o STF o seu próprio papel de mediação.
Em Cuiabá, a temperatura continua oscilando acima dos 40ºC. Os agricultores esperam pelas chuvas para o plantio da safra. Os cientistas prevêem que os efeitos perturbadores do atual El Niño devem se estender até o início do próximo ano, o que afeta a safra. A baixa histórica dos rios amazônicos indica a redução do transporte de umidade para as regiões que concentram a produção agropecuária.
Mas a bancada ruralista segue o seu combate, em linha, sem compreender a importância dos serviços que as florestas prestam ao clima, ao regime de chuvas, à agricultura, à geração de energia e ao abastecimento das cidades pelas Terras Indígenas e outras áreas protegidas. Quer peitar o governo, o STF, os direitos indígenas e a própria Constituição, enquanto Cuiabá torra e a Amazônia seca.