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Quem só se dispõe a ver o movimento trans como luta para garantir que possamos, por meio de cirurgia e tratamento hormonal, transformar nossos corpos ainda não foi capaz de ver o quão fundo estamos mexendo naquilo que se compreende por masculino, feminino, homem, mulher, gênero. Padrões de corpo cis continuam orientando a construção das nossas identidades, mas junto vamos vendo também a legitimação de modelos cada vez menos pautados em corpos que não os nossos e, com isso, vai começando a fazer sentido falarmos em masculinidades e feminilidades propriamente trans.

Exemplo? Corpos e mais corpos se afirmando trans mesmo sem se valer de hormônio ou cirurgia, homens trans abrindo mão de disfarçar os seios e podendo inclusive dizer que isso não faz deles menos homens, mulheres trans e travestis lidando de forma mais tranquila com seus pêlos (inclusive os faciais), seu pouco peito, suas entradas, calvície, muitas pessoas se permitindo manter o nome de registro mas forçando-o a existir agora sob um novo gênero (a Raul, a Guilherme, a Laerte, o Priscila) ou sob gênero algum. A verdade é que as expressões “homem com vagina” e “mulher com pênis” vão cada vez ganhando mais força, assim como tudo o que decorre disso, e a consequência é uma transformação radical do que se entendia por feminino e masculino, de como homens e mulheres podiam/deviam ser.

Ninguém nasce querendo fazer cirurgia ou tomar hormônios, ninguém traz no DNA a necessidade de ter um genital outro que não aquele com que nasceu, mas desde criança pessoas trans são ensinadas que o problema está no nosso corpo, que o que nos impede de existir para o outro da forma como existimos para nós é a presença desse genital e de tudo o que ele significa. “Você não pode ser menina, você tem pipi” ou “você tem pepeca, lógico que não é menino”, frases que nos acompanham desde cedo (e aí de quem contrariá-las), o momento preciso em que começam a nos condicionar para odiar nossos corpos, para entender que o genital é o grande responsável por não podermos ser quem de fato somos. Qual o espanto quando nos veem não poupando esforços para transformar tudo aquilo que, em nós, impede que existamos da forma como nos entendemos?

Mas não precisa ser assim e isso sequer é reivindicação só nossa. Basta pensar no quanto padrões racistas, machistas, capacitistas e gordofóbicos oprimem pessoas que não se veem nesses padrões e o quanto atendimento psicológico sozinho não basta para que essas pessoas encontrem condições de estar à vontade com seus próprios corpos. Vamos lutar sim para que pessoas trans possam repensar seus corpos da forma como julgarem necessário, mas vamos lutar também para que as palavras “mulher” e “homem” deixem definitivamente se ser entendidas como mera decorrência dum genital, o que significa que as próximas gerações trans vão cada vez mais poder afirmar como legítimas as feminilidades e masculinidades nossas, não mais pautadas em corpos cis*.

*Cis é o oposto de trans, ou seja, toda pessoa que, tendo sido criada para ser mulher, existe para a sociedade como mulher ou que, tendo sido criada como homem, existe como homem para essa mesma sociedade.