Quem perde na disputa de poder entre Legislativo e Judiciário quando o assunto é drogas?
A ausência de critérios objetivos dá margem para que instituições de segurança e justiça operem de maneira racista
Por Mariana Siracusa, Paula Napolião e Rachel Machado
Normalmente uma Proposta de Emenda Parlamentar (PEC) leva, em média, três anos e sete meses desde o momento em que é protocolada no legislativo até sua publicação no Diário Oficial. A PEC 45/23, que propõe constitucionalizar a criminalização do porte e posse de drogas para uso pessoal independente da quantidade, foi protocolada em setembro de 2023. Apenas sete meses depois, a PEC foi aprovada no Senado sem amplo debate com a sociedade civil sobre os impactos de sua aprovação e após uma série de manobras dos parlamentares para acelerar sua tramitação.
Tanto a proposição da PEC como sua tramitação acelerada estão inseridas em um contexto mais amplo de disputas políticas entre os poderes Legislativo e Judiciário. Um mês antes da PEC ser protocolada no Senado, o Supremo Tribunal Federal (STF) retomou o julgamento do Recurso Extraordinário 635.659, iniciado em 2015, que discute a constitucionalidade do art. 28 da Lei de Drogas (11.343/06), sobre o porte de drogas para uso pessoal. A discussão no STF tem repercussão geral, ou seja, vale para todos os processos semelhantes que aguardam julgamento, mas analisa um caso específico de uma pessoa presa com 3 gramas de maconha.
Por trás da demonstração de força política entre os Poderes está a necessidade real de estabelecer critérios objetivos para distinguir usuários e traficantes. A atual legislação de drogas prevê que a diferenciação considere aspectos subjetivos como o local da ocorrência, a quantidade e o tipo de droga encontrado e as circunstâncias sociais e pessoais. Na prática, o policial decide, no momento da abordagem, quem deve ser tipificado como usuário, sujeito a penas alternativas; e quem será classificado como traficante, com aplicação de pena mínima de cinco anos de reclusão.
A ausência de critérios objetivos dá margem para que instituições de segurança e justiça operem de maneira racista. Não é novidade que diversas pessoas consomem os mais variados tipos de drogas pelas cidades. No entanto, é menos novidade ainda que aquelas que serão abordadas e enquadradas pela polícia como traficantes são majoritariamente homens jovens, negros, moradores de favelas e periferias.
A legislação atual não só contribui para a criminalização da juventude negra e periférica, mas causa diversos impactos negativos na saúde pública. O proibicionismo cria uma série de barreiras para que pessoas que fazem uso problemático de drogas consigam tratamentos eficazes que respeitem os direitos individuais. No Brasil, a principal aposta do governo federal para esse público tem sido as comunidades terapêuticas, instituições privadas religiosas sem qualquer padrão de funcionamento que focam na reforma moral do indivíduo e não têm qualquer evidência científica de eficácia. Além disso, por causa da criminalização, usuários sentem vergonha de buscar ajuda.
Nas favelas e periferias, o impacto da guerra às drogas na saúde é sentido na pele. Acordar ao som de tiros e helicópteros, além de ter seu direito de ir e vir cerceado em decorrência de operações policiais é a rotina de milhares de moradores desses locais. Uma pesquisa do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) calculou os efeitos dos tiroteios durante ações policiais justificadas pela guerra às drogas na saúde da população e na oferta de serviços de saúde no Rio de Janeiro.
Os dados revelaram que o combate às drogas impede o acesso a um direito garantido pela Constituição Federal: a saúde. 59,5% dos moradores das comunidades expostas a tiroteios com participação do Estado afirmou que a unidade de saúde já havia sido fechada no ano anterior à pesquisa em decorrência da violência armada. Viver sob tensão ainda piora o estado de saúde: o número de pessoas com hipertensão arterial, insônia prolongada, depressão e ansiedade é maior em locais expostos a esse tipo de violência.
Não faltam evidências que comprovem os múltiplos impactos negativos causados pela proibição das drogas. Enquanto os poderes Legislativo e Judiciário seguem em uma queda de braço sobre o tema, perde-se de vista o que deveria ser prioridade neste debate: garantir que as pessoas que mais sofrem os impactos da guerra às drogas – sobretudo a população pobre e negra – não sejam ainda mais vulnerabilizadas. É preciso que todos os cidadãos tenham acesso aos direitos fundamentais previstos no mesmo artigo 5º da Constituição Federal que os parlamentares querem alterar. Usuários não são criminosos. E aqueles que precisam e/ou querem devem ter acesso a tratamentos de saúde adequados que respeitem sua autonomia e liberdade de escolha. Enquanto a repressão for o caminho para lidar com as drogas, seguiremos encarcerando, matando e negando direitos a boa parte dos brasileiros.
Mariana Siracusa é socióloga e coordenadora adjunta do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania.
Paula Napolião é antropóloga e coordenadora de pesquisa do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania.
Rachel Machado é socióloga e coordenadora de pesquisa do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania.