Prova sob Suspeita: a fragilidade das provas dependentes da memória no Processo Penal e seu impacto na população carcerária brasileira
Desde 2018, o IDDD atua no tema a partir do projeto Prova sob Suspeita. Por meio dele, busca produzir e disseminar informações sobre provas criminais, principalmente o reconhecimento de pessoas e os testemunhos, no intuito de qualificar o debate e a justiça criminal.
Por Marina Dias, diretora-executiva do IDDD e Vivian Peres da Silva, coordenadora de Programas do IDDD
O direito penal exerce um fascínio singular sobre as pessoas, sejam elas profissionais da área ou meros curiosos. Casos criminais, julgamentos de grande repercussão e a busca por justiça têm um apelo quase universal, talvez porque tocam em questões fundamentais da sociedade: a sensação de segurança, a proteção de bens e a complexidade da natureza humana. Mas, nos últimos tempos, um tema específico do direito penal vem ganhando destaque por seu impacto na vida de muitas pessoas: as provas dependentes da memória, como o reconhecimento e o testemunho, com histórias de prisões e até condenações injustas devido a erros judiciários e provas mal produzidas. Essa notoriedade foi impulsionada, em grande medida, por casos julgados pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) e de grande repercussão. A correta produção e valoração desse tipo de prova é essencial, pois pode determinar a liberdade ou o encarceramento de alguém.
Desde 2018, o IDDD atua no tema a partir do projeto Prova sob Suspeita. Por meio dele, busca produzir e disseminar informações sobre provas criminais, principalmente o reconhecimento de pessoas e os testemunhos, no intuito de qualificar o debate e a justiça criminal.
No processo penal, a produção de provas ocorre em dois momentos distintos: durante a investigação conduzida pela polícia civil no inquérito policial, um procedimento administrativo, no qual a defesa não pode se manifestar ou questionar (tecnicamente, não se produzem provas, mas elementos de informação que podem subsidiar uma denúncia pelo Ministério Público se houver indícios de crime e autoria); e durante a Ação Penal (ou seja, o processo em si), que se inicia formalmente com a denúncia apresentada pelo Ministério Público e recebida pelo juiz. Este é o momento de produção de provas, quando a defesa pode questioná-las.
Estudos da psicologia indicam que provas dependentes da memória são mais confiáveis quanto mais cedo são produzidas, pois a memória tende a sofrer influências externas com o tempo e se deteriorar. Em crimes como roubo, furto e tráfico – os que mais encarceram no Brasil –, a prisão preventiva e a condenação, frequentemente se baseiam unicamente em uma prova de reconhecimento ou em depoimentos de testemunhas. Nos crimes da Lei de Drogas, a prova central tem sido apenas o testemunho policial. Toda essa realidade escancara um processo penal cuja produção das provas tem se demonstrado frágil e frequentemente ilegal.
Um caso emblemático, que revela essa problemática, é o de Paulo Alberto da Silva Costa, homem negro de 38 anos, que foi alvo de mais de 60 processos criminais, com acusações baseadas apenas em reconhecimentos fotográficos, feitos com fotos retiradas das redes sociais e expostas no mural de uma delegacia, todos em desacordo com a lei. Em três anos e meio preso, Paulo viu as acusações se acumularem, perdeu o contato com a filha, o emprego e não acreditava em sua saída da cadeia. Nesse período, nunca foi chamado à delegacia para prestar depoimento. Mesmo assim, parte dos juízes responsáveis por seus processos considerou que tais reconhecimentos eram suficientes para provar sua culpa. Ainda que fossem feitos como previstos em lei, essa prova isolada não poderia sustentar as condenações.
O IDDD passou a acompanhar o caso e atuou pela liberdade de Paulo ao lado da Defensoria Pública do Rio de Janeiro. Em maio de 2023, em julgamento histórico perante o STJ, que reconheceu a situação de Paulo como uma violação sistemática de direitos, Paulo foi colocado em liberdade. No entanto, sua batalha com a justiça continua, já que ainda restam dezenas de processos para serem julgados. Sua vida pessoal e profissional também segue sendo profundamente atravessada por essa saga que escancara o racismo e a falência de nosso sistema processual penal.
A maioria da população carcerária brasileira possui o mesmo perfil de Paulo: jovem, negra e pobre. No inquérito policial, a ausência de espaço para a defesa torna os procedimentos de reconhecimento de pessoas suspeitas e a colheita de depoimentos de vítimas e testemunhas mais suscetíveis a ilegalidades e erros procedimentais, uma vez que a presença de um advogado ou defensor público é crucial para garantir que não haja violação de direitos.
Esta realidade afeta especialmente grupos vulneráveis. Muitas vezes, essas pessoas são investigadas sem sequer saberem da existência de um inquérito contra elas; ou, sabendo, sem que se garanta um acompanhamento da investigação que assegure seus direitos.
Mas mesmo quando há a garantia da presença da defesa, durante a ação penal, esse tipo de prova não deixa de ser frágil. Sendo uma prova que depende da memória, alguns conceitos trazidos pela psicologia precisam ser considerados no momento da atribuição do valor dessas provas para embasar uma decisão. E, olhando para o perfil da população carcerária, não se pode deixar de considerar como potencial “fragilizador” o cross-race effect, ou efeito de raça cruzada, que se refere à tendência das pessoas de terem maior dificuldade em reconhecer indivíduos de outras raças em comparação com pessoas de sua própria raça. Este efeito é particularmente relevante em contextos de reconhecimento de suspeitos, em que vítimas e testemunhas podem fazer identificações errôneas se a pessoa a ser reconhecida pertencer a uma raça diferente da sua.
No Brasil, o cross-race effect pode levar a um número desproporcional de identificações errôneas contra indivíduos negros. Este fenômeno exacerba as injustiças já presentes no sistema penal, contribuindo para o encarceramento de inocentes e perpetuando desigualdades raciais.
Por tudo isso é que se entende que a má produção de provas, sobretudo as dependentes da memória, está diretamente relacionada aos altos índices de encarceramento e condenações injustas. A plataforma Prova sob Suspeita foi criada para informar sobre essa problemática, reunindo entrevistas de especialistas, produções acadêmicas e relatos de casos, visando não apenas ser um instrumento de consulta e aprendizagem, mas também sensibilizar a sociedade sobre a importância da qualificação das provas, para que alcancemos uma justiça mais eficaz.
Conheça a plataforma: www.iddd.org.br/provasobsuspeita